1) O anúncio na televisão
A evolução tecnológica, finalmente, permitiu a
criação do mais avançado artefato para o bem-estar do ser humano. Trata-se das
Campânulas, um novo conceito em privacidade, conforto e lazer. Agora, em um
dispositivo de vidro praticamente inquebrável, de formato oval, auto-limpante,
você tem TODAS as vantagens da civilização moderna: telefone celular com
imagem, perfeito sistema de comunicação inter-campanular, microcomputador
ultra-veloz conectado à Internet, poltrona anatômica, capacete projetor de
imagens virtuais, TV a cabo e CD stereo, além de dezenas de opcionais. Temos
unidades de diversos tamanhos, planejadas com a mais moderna arquitetura,
totalmente isoladas dos sons externos, com fornecimento gratuito de até 100
imagens coloridas à sua escolha, para dar à campânula a sua personalidade
única.
2) Debate sobre o tema das campânulas, sob os
auspícios das empresas do setor
Apresentador: Após milhares de anos de
conflitos, a humanidade parece ter encontrado um caminho seguro para garantir
satisfação à grande maioria de seus membros. Trata-se das Unidades de
Encapsulamento para a Felicidade Individual (UEFI), ou Campânulas Coloridas,
como são carinhosamente chamadas.
Na sociedade moderna, as pessoas ficam em suas
campânulas durante a maior parte do tempo. Ali elas trabalham, lêem, assistem
seus filmes, ouvem música, podem tomar sua bebida favorita, fazem todas as
operações bancárias e estão conectadas à Bolsa de Valores, podendo controlar
totalmente seus investimentos. Podem acessar também, instantaneamente, às
notícias e novidades surgidas em todo o planeta, através do computador, bem
como fazer suas compras sem sair da campânula.
Portanto, visando o esclarecimento das
implicações de sua utilização em escala crescente em todo o planeta, nada mais
oportuno do que um debate a respeito desse fenômeno recente na história da
humanidade, que conjuga toda a funcionalidade da mais recente tecnologia com um
projeto psicológico inteiramente voltado à felicidade do ser humano.
Temos aqui o sr. Fabr, representante das
empresas fabricantes de campânulas, a Dra. Uda, psicóloga-chefe do Serviço
Central do Bem-Estar do Indivíduo, o ilustre teólogo Dr. Raposus, representando
a Federação das Igrejas, e o sr. Bronq, Comissário Geral da Segurança
Unificada. Com a palavra, os senhores participantes.
Só um adendo, complementando sua brilhante
introdução disse o Sr. Fabr. Claro que os usuários não ficam o tempo todo nas
campânulas; eles saem para refeições, rápidos contatos interpessoais ou outros
casos em que esses modernos dispositivos ainda não estejam totalmente adaptados
às suas necessidades.
Podemos garantir, porém, que esses
inconvenientes deverão ser reduzidos, nos projetos em desenvolvimento, ao
mínimo indispensável.
Como se sabe, prosseguiu, a vida pré-campanular
era um verdadeiro desastre. As pessoas eram muito infelizes, pois suas imagens
eram frágeis demais. Na campânula, você escolhe e manda instalar as suas
imagens prediletas, internas e externas, para sua satisfação interior e para
seu reconhecimento na sociedade, da forma que mais lhe agrade. E, se alguém
arranhar a sua imagem, você não precisa mais se exasperar, como antes
acontecia; basta substituí-la por uma mais resistente, no mesmo padrão ou
outro, em cores à sua escolha. Você ainda sai ganhando!
Na campânula você se livra das pressões
exteriores: num espaço só seu, você escuta apenas seus próprios pensamentos e
escolhe as imagens que quer ver. É o fim dos conflitos com a namorada ou
esposa, pois elas também estão felizes em suas campânulas!
Apresentador: E que diz a isso a Dra. Uda?
Tomando a palavra, a psicóloga coloca seus
óculos de aros grossos, encara fixamente as câmeras de TV e passa à
fundamentação científica das campânulas:
De fato, em outras épocas, os relacionamentos
interpessoais eram prejudicados pelos conteúdos negativos dos parceiros, e
frequentemente a individualidade era desrespeitada, com seguidas intromissões
de cada um deles na vida particular do outro.
Todos nós sabemos, porém, que o sucesso nessas
relações é medido pelo grau de satisfação de cada um. As pessoas querem se
sentir gratificadas em todos os aspectos, e isto é facilitado pelo banco de
dados da comunidade intercampanular, que informa todas as preferências e outras
características dos usuários.
Nesse sentido, as campânulas permitem
operacionalizar sensatamente o tradicional conceito do individualismo
competitivo, cujos excessos, no passado, tiveram resultados, digamos, um tanto
desastrosos.
O surgimento das campânulas coloridas está
teoricamente embasado na Teoria da Realização Pessoal com Ambição Moderada e na
Não Dependência Afetiva, e sua implantação está sendo viabilizada pelo Programa
de Adesão às Campânulas, com estrita concordância do usuário.
O Sr. Fabr, atento, comenta prontamente:
Esse programa, patrocinado pela Federação dos
Fabricantes das UEFI, é um verdadeiro sucesso. Praticamente todos estão
aderindo, pois não se trata de um produto comum, e sim de um estilo de vida!
De fato, continuou a Dra. Uda cada
pessoa, confortavelmente instalada em seu núcleo campanular, tem uma base de
operações projetada para preenchimento de suas horas livres, na forma de
milhares de jogos, filmes, cursos, arte, música, palestras e eventos culturais,
assim como conexão intercampanular com o mundo inteiro para troca de
informações.
O sujeito pode estruturar seu tempo de modo
agradável, de forma que sua vida, na maior parte, torna-se uma sequência de
entretenimentos; assim, é bastante remota a probabilidade do usuário sentir
solidão ou angústia: ele sempre terá como distrair-se de forma a não ver o
tempo passar.
De qualquer modo, continuou a psicóloga, dentro
da campânula, o indivíduo deverá ser capaz de resolver todos os seus problemas,
contando para isso com o total apoio da organização que tenho a honra de
dirigir, inclusive com fornecimento, orientado por renomados psiquiatras, de
antidepressivos e outras drogas de apoio em momentos de crise.
Portanto, ao partir para um relacionamento
afetivo, cada parceiro não precisará levar junto os seus problemas e nem criará
dependências específicas de uma pessoa em especial.
Assim, cada qual poderá respeitar o espaço do
outro, onde o mesmo possa se expandir, se realizar e desenvolver todo o seu
potencial, granjeando assim o reconhecimento de todos e uma posição adequada na
sociedade, como justa recompensa aos seus esforços e serviços prestados, talvez
até sendo homenageado com uma Campânula de Honra, ornamentada com frisos de
ouro!
Um minuto, Dra. Uda, diz o Dr. Raposus
sendo inevitável alguma forma de sofrimento pessoal, gostaria de dizer que,
para lidar com essas coisas desagradáveis, estamos fornecendo in-house um
novo serviço de conforto espiritual, com mensagens religiosas dos mais eruditos
pregadores. Através de seu douto ensino, cada indivíduo, de dentro de sua
campânula, aprende a enviar suas preces a Deus, e assim obter alívio ao
atravessar as tormentas desta vida.
Sim, respondeu a Dra. Uda isso mostra o
comprometimento de nossas instituições com o bem estar do indivíduo,
abrangendo, naturalmente, o campo espiritual.
Apresentador: Fale-nos, sr. Bronq, sobre o
impacto das campânulas coloridas sobre a segurança social.
Sr. Bronq: Hoje, de acordo com nossa
legislação, é obrigatório o uso da campânula para qualquer pessoa que tenha um
projeto de realização pessoal. Consequentemente, a esmagadora maioria da
sociedade aderiu ao programa.
E, com o crescimento do nível de satisfação
individual, houve uma queda considerável na quantidade de infrações e crimes de
qualquer espécie. Ao adquirir sua campânula, o usuário recebe também uma imagem
e um rótulo que é sua identificação oficial, que pode ser muito útil em caso de
emergência.
Uma coisa, entretanto, permanece não resolvida.
Infelizmente, porém, há alguns insatisfeitos, que questionam tanto as
campânulas quanto as imagens e também os rótulos. Obviamente são pessoas não
competitivas, que se recusam a usar campânulas, vivendo, portanto, em condições
bastante precárias.
Trata-se de cidadãos desajustados, que
precisam de ajuda, disse a Dra. Uda eles questionam até mesmo o
revolucionário conceito psicológico da sociedade pós-moderna, ou seja, a
utilização pragmática das opções disponíveis em outros campanulares,
considerados como fornecedores de serviços adicionais de bem-estar individual
(sem qualquer envolvimento com seus possíveis problemas pessoais), visando à
satisfação de nossas necessidades.
Dizem eles que isso é um ato indigno e brutal,
e, assim procedendo, os homens serão eternamente isolados e infelizes, além de
regredirem a patamares de consciência inferiores aos dos animais. Nós, porém,
queremos partilhar soluções, e não problemas: ninguém tem o direito de exportar
suas angústias. Quem não sabe que o envolvimento com problemas do outro (saúde,
tristeza, desemprego, solidão, etc.) só traz desgostos e desequilíbrio,
prejudicando o desempenho profissional do indivíduo?
E, afinal, o que é felicidade senão prazer,
conforto e segurança?
Apresentador: O que o senhor pode nos dizer a
esse respeito, Dr. Bronq?
Pausadamente, respondeu o Comissário Geral da
Segurança Unificada:
Investigamos detalhadamente esse caso, e
constatamos que esses homens dizem que a campânula é uma coisa monstruosa, que
o homem é feito de energia e não de tecnologia, e ainda que imagens e rótulos
distorcem e limitam o ser humano.
Afirmam ainda que há uma coisa sem nome, fora
do tempo e da cadeia de causas e efeitos, inalcançável pela razão, mas sem a
qual a vida humana não é mais que um absurdo sem remédio.
Certa vez escutei um desses rebeldes dizer que
essa coisa pode ser chamada de Amor subvertendo, assim, o sentido de um
conceito super conhecido e difundido na sociedade, sendo na verdade um dos
pilares do nosso edifício social.
Todos nós sabemos muito bem que o amor é a ação
orientada para o prazer e o conforto psicológico, e nos esforçamos para
praticá-lo em nossa vida diária. E compaixão é a caridade que praticamos,
prestimosamente, para favorecer as classes menos favorecidas.
Mas, para tais pessoas, "a compaixão é um
estado de alma que reflete a beleza da energia criadora, sendo a base dos
relacionamentos genuínos, onde flui generosamente a amizade irrestrita" (sic)".
Para eles, tudo deve ser compartilhado,
inclusive as fraquezas e sofrimentos pessoais de toda espécie, e que também as
contradições inerentes à estrutura mental do ser humano precisam ser
compreendidas e perdoadas. Afirmam eles que, para livrar-se do medo e do padrão
mental de recompensas e represálias, cada um precisa passar pelo fogo da visão
de si mesmo como de fato a pessoa é, sem absolutamente nenhum tipo de apego ou
repulsa, de elogio ou de crítica.
Não há tarefa maior nem mais nobre para um ser
humano", dizem eles, "e a dor dessa visão é tamanha que traz a cura radical do
sofrimento e da ignorância, juntamente com a liberdade e compaixão.
Trata-se, portanto, de uma mensagem
profundamente perturbadora e subversiva, e confesso que fiquei impressionado,
completou o Comissário.
Apresentador: O senhor diria, Comissário, que
tais pessoas ameaçam o programa?
Não necessariamente, aparteou o sr. Fabr
quando possuem numerosos seguidores, sentamo-nos com elas, visando a descobrir
um denominador comum entre suas mensagens e nossos conceitos para o bem-estar
do indivíduo, que é, afinal, a preocupação constante e o objetivo maior de
todos nós.
Quando esses homens são razoáveis e surge um
acordo, colocamos à sua disposição o mundo do poder, do sucesso e da fama, com
todas as facilidades para a divulgação de suas mensagens diretamente aos
milhões de campanulares conectados ao Serviço Central do Bem-Estar do
Indivíduo, dirigido aqui pela Dra. Uda.
É verdade, disse o teólogo já tivemos
alguns casos de ex-rebeldes que foram cooptados pelo sistema, e acabaram
contribuindo para reciclagem das idéias e fortalecimento do programa,
tornando-se, por sua vez, pregadores de reconhecido sucesso na comunidade
intercampanular.
Alguns, porém, não querem fazer
concessões, complementou o Comissário nossa legislação, sem dúvida, é
demasiado tolerante com tais pessoas. Para esses casos, recomendo prender por
agitação social os líderes, e logo tais movimentos perderão a vitalidade,
acabando por se esvair completamente.
"Ao contrário, meu caro Bronq, redarguiu o
teólogo as evidências históricas mostram que a simples remoção desse tipo de
pessoas nunca deu bons resultados para a erradicação de doutrinas exóticas. Por
outro lado, nossas convicções religiosas exigem que sejamos tolerantes com
todos.
Assim, melhor é deixá-los na insignificância
das posições em que naturalmente se colocam, por não usarem campânulas. Não
poderão causar grandes males, pois estão desprovidos de acesso direto às
campânulas dos cidadãos normais, os quais, por sinal, não têm tempo a perder
nem interesse por mensagens não dirigidas diretamente ao seu desejo de
satisfação.
Entretanto, Comissário, parece-me prudente acompanhar seus passos,
discretamente, para que a propagação de tais idéias não saia de controle, só
usando o rigor da lei em caso de evidente ameaça às instituições
estabelecidas.
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