Quem escuta com toda atenção "Légua tirana", de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, não pode deixar de se emocionar profundamente.
Pois essa canção retrata a aventura humana, entre esperanças e temores, ganhos e perdas, alegrias e dores.
Veja sua própria vida. Mesmo se você for jovem, poderá já ter provado o aguilhão do sofrimento.
Mais velhos, não nos são estranhas a solidão, o abandono, as dificuldades materiais, desemprego, doenças.
Há um impulso em cada um em nós que resiste às adversidades e luta por dias melhores. Mas, dependendo das circunstâncias,
ele também cede e jogamos a toalha, derrotados. Esse é um ponto de inflexão, que pode marcar o início de um
renascimento interior. É quando deixamos de nos sentir especiais e nos percebemos como seres humanos a caminho da morte.
O que isso tem a ver com essa canção? Ela mostra o que acontece quando, mercê de um sofrimento muito intenso, além de nossas forças
(simbolizado no maravilhoso verso
"o sol tostou as foia e bebeu o riachão") o ego enceta a jornada que poderá transformá-lo radicalmente.
O homem que conclui a peregrinação não é o mesmo que a iniciou: este abrigava em si sentimentos de revolta, de vítima da Injustiça do mundo, de tristeza, dúvida e esperanças.
É esse o combustível que o move ao Juazeiro.
Mas o homem que retorna é outro; tem mais doçura na alma; modificou-se na peregrinação.
"Tô voltando estrupiado", diz a canção. Estrupiado é uma palavra forte, que significa "acabado, arrasado, todo arrebentado".
Apesar disso, ele traz o coração leve e só pensa em doar, compartilhar com seus entes queridos:
"Trago um terço pra Das Dores |Pra Reimundo um violão | E pra ela, e pra ela |Trago eu e o coração"
A transcendência do ego é muito difícil. Inclusive nós não a desejamos, e a evitamos a todas as maneiras.
Ela foi retratada em várias canções, principalmente nordestinas, ligadas à pobreza e
a situações de vida onde a nada mais se aspira neste mundo.
Como em "O violeiro", do Elomar:
"Tive muita dor de não ter nada
Pensando que esse mundo é tudo ter
Mas só depois de penar pelas estradas
Beleza na pobreza é que fui ver."
E também em "A meu Deus um canto novo":
"Topei certa altura da jornada | Com um qui nem tinha pernas para andar. Comoveu-me em grande compaixão.
— Voltano o olhar para os céus, recomendou-me a Deus, Senhor de todos nós, rogando nada me faltar"
Vejam a transformação que o sofrimento trouxe ao pobre aleijado,
dependente em tudo dos demais seres humanos: é ele quem abençoa o doador da esmola.
Não se trata, aqui, do elogio da doença ou da escassez. Nada disso.
O caso é que estamos atados à materialidade em diversos níveis, tanto aos apegos sensoriais
como às paixões, ideologias, aquisições e posses, como se a felicidade real viesse dos
nossos laços às coisas do mundo. Este, na verdade, apenas nos engana o tempo todo, dando prazeres
momentâneos e alegrias transitórias que não resistem aos ventos da impermanência.
Enquanto nosso sentimento de completude e paz depender dessas coisas, estaremos em perigo,
vivendo à sombra do medo, pois tudo passa, se deteriora, desaparece.
A única possibilidade humana de achar a felicidade é pela redenção do ego.
Este carrega em si demasiados enganos, que, paradoxalmente, são construídos
sobre algo que é verdadeiro,
porém jamais percebido.
Podemos entender isso com facilidade se pensarmos num projetor exibindo um filme na tela do cinema.
Há uma lente pela qual passa a película, e ela recebe uma forte luz
que projeta na tela os diversos fotogramas (quadros) do filme.
Mas eis que a lente se atenta unicamente às imagens projetadas na tela, e nunca à luz em si mesma.
Assim, a luz passa despercebida, e se perde nas tramas e nos enredos do filme.
Nessa metáfora a Luz é o Espírito, puro, perfeito e incontaminado pelas imagens que por ele passam e ganham existência na tela de nossa mente.
O mesmo sucede conosco. Atentos ao espetáculo da existência, totalmente absorvidos nele, escapa-nos inteiramente
que é nossa consciência que está a interpretar as falas e representar as cenas dos dramas,
como um ator que interpreta um papel e assume a identidade do personagem, que
é, simultaneamente, espectador do filme e também é co-autor do seu enredo.
Cada um de nós é um ator-consciência que se identificou com o papel de si mesmo no
grande espetáculo da vida. Somente quando esse ator despir-se de suas falas aprendidas
e de seus comportamentos condicionados é que ele poderá ver-se como consciência pura, a Luz divina.
Essa é a grande transformação da alma-ator-inconsciente de sua real identidade.
Cada existência é uma oportunidade para essa transformação, e
o que transforma a alma é a peregrinação consciente.
Porque somos todos peregrinos nesta linda Terra, querendo ou não.
E cada um de nós está vivendo a peregrinação que lhe compete viver, mas o faz inconscientemente,
guiado pelo falso eu, que pensa ter vindo à Terra para fazer turismo — e, assim,
recusa e foge, a todo custo, do sofrimento e até
mesmo das mínimas contrariedades, como se fracassos e dores não devessem fazer parte da jornada.
Isso tira de nossa peregrinação seu inerente poder transformador.
É certo que o significado último da existência é encontrar a Fonte da Felicidade.
Mas, para isso, temos de retirar todas as máscaras do ator, inconsciente de sua verdadeira face.
Isso é o EU E O PAI SOMOS UM, que Jesus falou. A unidade com a Fonte Eterna é um bálsamo para todas as dores.
Nossas máscaras não cairão facilmente.
Mas nossa peregrinação CONSCIENTE trará
a purgação, expiação, catarse e redenção do ego,
desvencilhando-o dos fatores de corrupção e revelando sua origem divina.
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