A PEREGRINAÇÃO INCONSCIENTE
JC Cavalcanti - 13/jun/21
Purgação: limpeza, purificação pela eliminação das impurezas ou matérias estranhas

Catarse: na religião, medicina e filosofia da Antiguidade grega, libertação, expulsão ou
purgação do que é estranho à essência ou à natureza de um ser e que, por isso, o corrompe.

Quem escuta com toda atenção "Légua tirana", de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, não pode deixar de se emocionar profundamente. Pois essa canção retrata a aventura humana, entre esperanças e temores, ganhos e perdas, alegrias e dores.
Veja sua própria vida. Mesmo se você for jovem, poderá já ter provado o aguilhão do sofrimento. Mais velhos, não nos são estranhas a solidão, o abandono, as dificuldades materiais, desemprego, doenças.

Há um impulso em cada um em nós que resiste às adversidades e luta por dias melhores. Mas, dependendo das circunstâncias, ele também cede e jogamos a toalha, derrotados. Esse é um ponto de inflexão, que pode marcar o início de um renascimento interior. É quando deixamos de nos sentir especiais e nos percebemos como seres humanos a caminho da morte.

O que isso tem a ver com essa canção? Ela mostra o que acontece quando, mercê de um sofrimento muito intenso, além de nossas forças (simbolizado no maravilhoso verso "o sol tostou as foia e bebeu o riachão") o ego enceta a jornada que poderá transformá-lo radicalmente. O homem que conclui a peregrinação não é o mesmo que a iniciou: este abrigava em si sentimentos de revolta, de vítima da Injustiça do mundo, de tristeza, dúvida e esperanças. É esse o combustível que o move ao Juazeiro.

Mas o homem que retorna é outro; tem mais doçura na alma; modificou-se na peregrinação. "Tô voltando estrupiado", diz a canção. Estrupiado é uma palavra forte, que significa "acabado, arrasado, todo arrebentado". Apesar disso, ele traz o coração leve e só pensa em doar, compartilhar com seus entes queridos:
"Trago um terço pra Das Dores |Pra Reimundo um violão | E pra ela, e pra ela |Trago eu e o coração"

A transcendência do ego é muito difícil. Inclusive nós não a desejamos, e a evitamos a todas as maneiras. Ela foi retratada em várias canções, principalmente nordestinas, ligadas à pobreza e a situações de vida onde a nada mais se aspira neste mundo.
Como em "O violeiro", do Elomar:

"Tive muita dor de não ter nada
Pensando que esse mundo é tudo ter
Mas só depois de penar pelas estradas
Beleza na pobreza é que fui ver."


E também em "A meu Deus um canto novo":
"Topei certa altura da jornada | Com um qui nem tinha pernas para andar. Comoveu-me em grande compaixão.
— Voltano o olhar para os céus, recomendou-me a Deus, Senhor de todos nós, rogando nada me faltar"


Vejam a transformação que o sofrimento trouxe ao pobre aleijado, dependente em tudo dos demais seres humanos: é ele quem abençoa o doador da esmola.
Não se trata, aqui, do elogio da doença ou da escassez. Nada disso. O caso é que estamos atados à materialidade em diversos níveis, tanto aos apegos sensoriais como às paixões, ideologias, aquisições e posses, como se a felicidade real viesse dos nossos laços às coisas do mundo. Este, na verdade, apenas nos engana o tempo todo, dando prazeres momentâneos e alegrias transitórias que não resistem aos ventos da impermanência.

Enquanto nosso sentimento de completude e paz depender dessas coisas, estaremos em perigo, vivendo à sombra do medo, pois tudo passa, se deteriora, desaparece. A única possibilidade humana de achar a felicidade é pela redenção do ego. Este carrega em si demasiados enganos, que, paradoxalmente, são construídos sobre algo que é verdadeiro, porém jamais percebido.

Podemos entender isso com facilidade se pensarmos num projetor exibindo um filme na tela do cinema.

Há uma lente pela qual passa a película, e ela recebe uma forte luz que projeta na tela os diversos fotogramas (quadros) do filme. Mas eis que a lente se atenta unicamente às imagens projetadas na tela, e nunca à luz em si mesma. Assim, a luz passa despercebida, e se perde nas tramas e nos enredos do filme.

Nessa metáfora a Luz é o Espírito, puro, perfeito e incontaminado pelas imagens que por ele passam e ganham existência na tela de nossa mente.

O mesmo sucede conosco. Atentos ao espetáculo da existência, totalmente absorvidos nele, escapa-nos inteiramente que é nossa consciência que está a interpretar as falas e representar as cenas dos dramas, como um ator que interpreta um papel e assume a identidade do personagem, que é, simultaneamente, espectador do filme e também é co-autor do seu enredo.

Cada um de nós é um ator-consciência que se identificou com o papel de si mesmo no grande espetáculo da vida. Somente quando esse ator despir-se de suas falas aprendidas e de seus comportamentos condicionados é que ele poderá ver-se como consciência pura, a Luz divina. Essa é a grande transformação da alma-ator-inconsciente de sua real identidade.

Cada existência é uma oportunidade para essa transformação, e o que transforma a alma é a peregrinação consciente. Porque somos todos peregrinos nesta linda Terra, querendo ou não. E cada um de nós está vivendo a peregrinação que lhe compete viver, mas o faz inconscientemente, guiado pelo falso eu, que pensa ter vindo à Terra para fazer turismo — e, assim, recusa e foge, a todo custo, do sofrimento e até mesmo das mínimas contrariedades, como se fracassos e dores não devessem fazer parte da jornada. Isso tira de nossa peregrinação seu inerente poder transformador.

É certo que o significado último da existência é encontrar a Fonte da Felicidade. Mas, para isso, temos de retirar todas as máscaras do ator, inconsciente de sua verdadeira face. Isso é o EU E O PAI SOMOS UM, que Jesus falou. A unidade com a Fonte Eterna é um bálsamo para todas as dores.

Nossas máscaras não cairão facilmente. Mas nossa peregrinação CONSCIENTE trará a purgação, expiação, catarse e redenção do ego, desvencilhando-o dos fatores de corrupção e revelando sua origem divina.

 


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