As lágrimas da memória 

FICHA TÉCNICA

Autor: Amélia Veiga
Título: As Lágrimas da Memória
Capa Hissopo © 2006, EDIÇÕES CHÁ DE CAXINDE
Av. do 1.º Congresso do MPLA, 20/24 - Luanda
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E-mail: chacaxinde@ebonet.net

Colecção Raízes de Caxinde
Dirigida por Jacques A. dos Santos
Arranjo gráfico Hissopo
Execução Gráfica IDEAL - Luís Caldas & Coutinho, Lda. — Guimarães - Portugal

Depósito Legal n.º 2961/06
ISBN n.º 978-972-8934-514
Chá de Caxinde / Colecção Raízes de Caxinde - 1 
   



“Os Silêncios de Amélia”

(Prefácio de Jorge Arrimar para o livro “Lágrimas da Memória” de Amélia Veiga)

Era um dia ensolarado de Novembro de 2005. Jacques dos Santos, meu amigo e editor da Chá de Caxinde, encontrava-se em Lisboa, numa escala da sua viagem entre Angola e o Brasil. No bolso trazia uma série de projectos, entre eles a publicação neste último país de uma antologia de contos de escritores da Lusofonia, confidenciou-me.

Não o via desde Agosto, quando me deslocara a Angola para participar no I Encontro de Escritores Angolanos, que teve lugar na minha província natal, a Huíla.

Depois do abraço angolanamente expressivo e afectivo, soube que o encontro era alargado a outras pessoas, aos escritores Alberto Oliveira Pinto, autor de Mazanga, e Elizabeth Vera Cruz, autora d’ O Estatuto de Indigenato.

Mas a grande surpresa foi encontrar alguém que não via há mais de trinta anos, Amélia Veiga, que eu conhecera no Lubango, da minha juventude. Foi bom reencontrá-la e saber que tinha um livro de poesia para ser publicado pela Chá de Caxinde, após “trinta anos em que eu me refugiei, trinta anos em que me isolei”, como dizia, mesmo sabendo que, apesar de estar isolada há tanto tempo, ainda havia quem não se tivesse esquecido dela e do papel importante que tinha tido na literatura que na altura se fazia em Angola, nas já recuadas décadas de 60 e 70.

Disso é testemunha as antologias e referências à sua obra que iam sendo publicadas por esse mundo. À Chá de Caxinde coube a honra de a fazer regressar a Angola, reapresentando-a aos leitores que, decerto, desconhecem o seu percurso como poetisa deste país, desta terra que assumiu como sua e onde tentou conquistar legitimidade, não obstante os prolongados silêncios a que foi obrigada por circunstâncias adversas.

Este livro é, então, um livro de reencontro e de afectos, mas também de despedida. Amélia Veiga nasceu para a poesia em Angola e esperou por Angola para se despedir da poesia, basta atentar nos poemas com que encerra “Lágrimas da Memória”, intitulados “Testamento” e “Epitáfio”.

O penúltimo é dedicado aos seus netos:

 “Aqui estou livre e despojada/na certeza reconfortante/e absurdamente feliz/de não ter nada…/E nada tendo para além de mim/eu sou a minha própria herança/que vos deixo/[…]”;

o último é também o acto final da longa peça que começou a ser encenada nos anos 60, no palco da vida e da poesia que o vale do Lubango foi para Amélia Veiga, e do qual, confessa-nos a A.,

“[…] restam apenas/memórias roxas ou lilases/que são da morte cores preferidas/e num álbum sem legendas/imagens silenciosas e fugazes/de uma vida que aconteceu/[…]”.

Os poemas deste livro são o grande poema com que Amélia dá por encerrado o ciclo da sua vida literária, iniciada em 1962 com a publicação de “Destinos” pela editora Imbondeiro.

Foram os escritores Garibaldino de Andrade e Leonel Cosme que a encorajaram a publicar os poemas que ia fazendo e que, por timidez, guardava na gaveta… desde a adolescência. Alguns dos poemas deste seu primeiro livro foram escritos nessa fase da sua vida.

E quando a sua poesia passou a ser do leitor de livros que tinham a chancela da Imbondeiro, que não eram poucos, Amélia Veiga percebeu que tinha valido a pena partilhar as suas emoções com quem a quis ler.

Bem recebida pela crítica e com muitos leitores a testemunharem-lhe pessoalmente o seu agrado, a poetisa sentiu-se motivada a enviar mais um projecto de publicação à Imbondeiro, que logo foi aceite.

 “Poemas” é o seu segundo título, que viria a receber da Câmara Municipal de Sá da Bandeira o prémio “Fernando Pessoa”.Recebido com entusiasmo pela crítica de Angola e Portugal, “Poemas” é rapidamente esgotado, o que não era vulgar na época.

Mesmo nos nossos dias, são raros os livros de poesia que se esgotam depressa. Ficavam assim garantidas as suas regulares participações em iniciativas da editora huilana. Poemas seus foram seleccionados para a “Antologia Poética Angolana-I”, na qual se encontravam representados os nomes maiores da poesia de Angola. Nesse conjunto de poetas seleccionados encontramos apenas dois nomes no feminino, Alda Lara, falecida pouco tempo antes, e Amélia Veiga.

E aquela foi, decerto, uma fonte inspiradora para esta última, até na forma dorida, exaltada, como anunciam ambas a sua paixão pela terra e pelas gentes africanas, exultando com elas na sua beleza natural e alegria espontânea e sofrendo com elas nas suas desgraças e desventuras.

Alda Lara publicou um poema, cujo título “Testamento”, deixava intuir uma partida e um legado; Amélia Veiga deixa-nos também o seu “Testamento”, em que anuncia a sua despedida da vida literária, e nos deixa a sua poesia como herança. Alda Lara e Amélia Veiga, juntas, mesmo quando a primeira passou a estar definitivamente ausente, e se a primeira deixara um eco dorido pelo drama da vida,

“Trago os olhos naufragados / em poentes cor de sangue...”7,

a segunda acalentava ainda ventos de liberdade quando escrevia

“das entranhas da terra / irrompe um vento alucinado que varre… varre / as folhas secas do mundo…”.

Mas o tempo não era de feição para quem não se comportava de acordo com os critérios definidos por um poder político marcadamente autocrático, a guerra colonial intensificava-se e a PIDE começava a estar cada vez mais vigilante e castradora também da actividade literária.

A “Antologia Poética-II”, que fora adiada, por prudência, pois a polícia do Estado rondava cada vez mais a Editora, acabaria por não sair a público e a própria Imbondeiro foi definitivamente encerrada em 1964.

Para Amélia Veiga (e para a maior parte dos poetas e escritores representados nas antologias e colectâneas da Imbondeiro) seguir-se-ia um tempo de silêncio, só quebrado uma década depois, com a revolução de 25 de Abril de 1974.

E é neste breve intervalo de todas as guerras que Amélia reaparece com mais um livro, bem a propósito intitulado “Libertação”, o que a levaria a ser colocada num lugar de relevo entre “as nossas melhores poetisas”.

A sua poesia é intuitiva e profundamente humanista, deixando reflectir um ideal de justiça que a A. sabia dever existir entre os homens. Ela revela-se rica pela exploração, ao nível de conteúdo, das contradições que definem a complexa condição humana, ao mesmo tempo que lança um apelo à necessária comunhão entre os homens.

Trata-se, também, de um lirismo que não enjeita deixar a nu certas chagas sociais de Angola ao tempo: o analfabetismo, a fome, a desumanidade do contrato e dos castigos injustos. Mas também deixa transparecer antecipadamente a sua apreensão sobre os dramas terríveis que se abateram sobre a sua terra adoptiva, o que levaria Cândido Beirante a formular o voto de que “tal profecia de futuros massacres se não realiz[asse]”.

Infelizmente, a realidade provaria o contrário e Angola submergiu numa guerra civil que conduziria ao caos, à morte e à fuga de milhares de portugueses e angolanos. Amélia Veiga não fugiria a esse destino, fugindo de uma Angola ameaçadora

“[…] grito pedras / balas sangue morte / renúnciaamarga […]” mas levando com ela uma Angola de “[…] manhãs radiosas / de sol entornado sobre a terra / e sobre as casas / do brilho dos diamantes / no cacimbo das folhas […]”.

Infelizmente o intervalo de paz entre uma guerra que acabava e outra que estava para começar foi muito curto e Amélia voltou a perder-se num silêncio ainda mais longo que a foi sufocando, sufocando de nostalgia, sufocando de saudade, sufocando de revolta reprimida

“Neste chão de exílio / Neste céu de espanto / […]”.

Este livro que agora Amélia Veiga nos trás, não é um livro qualquer. É uma mão cheia de lágrimas que a memória lhe legou e que ela nos deixa como uma salgada herança. Também um grito de libertação, o grito que envolve o choro, o sofrimento sentido durante um tempo demasiadamente longo em que a sua voz se silenciara.

Afinal o silêncio de muitas outras vozes que a História teimosamente foi abandonando nas margens do seu sinuoso curso. Valerá por isso avançar um pouco mais, alargar o campo onde tradicionalmente se move um prefácio de um livro de poesia… porque, volto a dizê-lo, este não é um livro qualquer. Ele cheganos directamente de um tempo extinto, de uma época que, como todas as outras, não se limitou a passar, a ser vorazmente engolida por Cronos.

Sobre esse tempo, fechou-se uma forte e pesada porta de silêncios, mitos e preconceitos. Destes se poderá dizer que, como a Fénix, das suas cinzas nasceram outros que por aí estão para durar.

Façamos pois, deste livro de Amélia Veiga, uma descomplexada janela para um tempo que também o foi de homens e mulheres de qualidade, a todos os níveis, como afinal o são todas as épocas da História da Humanidade, independentemente da classificação, do rótulo, que venham a ganhar depois.

Por isso, a memória que a nossa A. reclama é, no fundo, uma parte da nossa memória colectiva e inscreve-se nos meados do século XX, tendo por seu espaço, por seu campo de acção que só a memória ainda preserva, a terra africana, o angolano chão que Amélia acariciou

“num êxtase / de amor e mágoa”

e que a fez perguntar com a angústia de quem se havia dado completamente

“[…] que cheiro que marca / que sentimento / ficou de mim? / […] / Que memórias escorrem / nas paredes / das casas onde vivi? / Que mãos / retêm o calor / dos afectos que partilhei? / [...] / que cheiro que marca / que sentimento / te ficou de mim?”.

Valerá a pena, então, falarmos um pouco desse campo onde as energias de Amélia Veiga encontraram terreno fértil para a sementeira da sensibilidade e dos afectos que a sua poesia traduz. Falemos, pois, da cidade do Lubango (ao tempo Sá da Bandeira) “com seu encanto e seu recato, as suas ruas de grandes vivendas com jardins, as suas ruas direitas, os seus Largos largos. Enfeitada com flores, com sepatódias, com canteiros. Limpa e ordeira. Com carros modernos pelas estradas. Com seus passeios espaçosos, quadriculados, onde se caminhava à vontade. Rodeada de paisagens grandiosas, inexploradas, múltiplas e variadas. Num país ainda a desbravar.”

Deste modo, melhor se poderá perceber em que meio despontou e soube medrar a nossa poetisa. E talvez importe recuar um pouco no tempo para perceber que o Lubango, apesar de ser jovem, pois a sua elevação a cidade havia ocorrido apenas a 31 de Maio de 1923, já demonstra alguma maturidade cívica e política.

O inconformismo que os seus habitantes algumas vezes demonstraram, foi revelador de uma atitude anti-regime, como provaram durante o governo da Huíla tutelado por Henrique Galvão (1929). Numa demonstração clara do agastamento generalizado pela exoneração intempestiva e injusta do governador mais progressista que haviam tido,14 os chicoronhos organizaram a “mais imponente [e] grandiosa manifestação até [ali] feita [no] Planalto”, e cerca de trinta anos depois, votariam por maioria, em Humberto Delgado, candidato da oposição nas presidenciais portuguesas de 1958.

Do ponto de vista cultural, é sobretudo a partir da década de 50 que o Lubango conhece um desenvolvimento expressivo, de pendor universal e cosmopolita. O seu dinamismo era evidente e conjuntamente com Luanda, foi umas das cidades angolanas que primeiro tiveram Liceu.

Pela capital da Huíla passaram personalidades marcantes da intelectualidade e da política angolanas, como Pepetela, Costa Andrade, Viriato da Cruz, Lúcio Lara, Aires de Almeidas Santos, Manuel Rui, António Neto. Este último, natural do Lubango, formouse em Matemática e foi considerado um dos melhores poetas da sua geração.

Em 1960 encontram-se ali a residir personalidades cultural e intelectualmente dinâmicas, como Garibaldino de Andrade (professor e escritor reconhecido do Neo-realismo), Leonel Cosme, escritor e dinamizador cultural, Maurício Soares (escritor), Henrique Abranches (escritor e antropólogo), Tomás Jorge (escritor), 10 Acácio Barradas (jornalista e político), Onésimo Silveira (escritor e político caboverdiano) e, naturalmente, Amélia Veiga. E é também nesta década que surge o Cineclube da Huíla, o Círculo de Cultura Musical, o Atelier Livre da Artes Plásticas, o Teatro Experimental de Sá da Bandeira, o Museu da Huíla, a delegação da Sociedade Cultural de Angola (com sede em Luanda), os Estudos Gerais Universitários (1963) e as Editora Imbondeiro (1960).

Esta última rapidamente se converteria, porventura, no mais amplo e fecundo movimento editorial que Angola conheceu, tendo começado com um boletim informativo, intitulado Notícias de Imbondeiro, e uma colecção de bolso designada Colecção Imbondeiro.

Na cidade, as publicações Imbondeiro eram vendidas em livraria própria, mas a sua acção seria alargada ao mundo de língua portuguesa, com publicações vendidas em regime de assinatura. Neste contexto de evidente efervescência cultural teve lugar o I Encontro de Escritores de Angola, que decorreu entre 19 e 27 de Janeiro de 1963.

Tratou-se de uma iniciativa pioneira que resultou da troca de ideias entre duas personalidades importantes da cultura huilana da época, Garibaldino de Andrade e Leonel Cosme, ambos ligados à fundação da editora Imbondeiro, à qual logo se associou o jornal “ABC” de Luanda.

No terreno não faltou o apoio, desde a primeira hora, da Câmara Municipal, cujo presidente era o dinâmico major José Ramos Camisão, e do professor Albino Fernandes de Sá. Coube a este último estabelecer contactos no sentido de reunir na capital da Huíla uma representação da cultura portuguesa, de modo a alargar o âmbito do debate que se colocava na altura: “O que se entende por cultura angolana”.

Nessa época, havia quem entendesse o conceito de cultura angolana (e naturalmente de Literatura 11 Angolana) como “algo esfumado e movediço”, levando a uma discussão que se prolongou por muitas sessões, durante nove dias, por um conjunto heterogéneo individualidades, dos quais vinte e nove eram escritores de Angola (naturais e residentes).

Durante o Encontro foi lançada a “Colecção Mákua”, para a qual se projectava uma periodicidade trimestral, em mais uma iniciativa editorial da Imbondeiro. Também nesta colecção Amélia Veiga estaria representada.

Contudo, nada disso foi suficiente para que os chicoronhos viessem colher algum crédito quanto ao seu passado político e nem sequer o seu dinamismo cultural granjeou para a sua cidade grande protagonismo em Angola.

Na história da literatura angolana, as referências à cidade do Lubango são escassas, quer nos roteiros, quer nos temas abordados, quer ainda como local de actividade literária. Uma das explicações para tal situação pode residir no facto de o peso da sua população, na época colonial, ter sido predominantemente de origem europeia, o que fazia dela uma urbe pouco consentânea com os valores que, sobretudo nas últimas décadas dessa época, defendiam os intelectuais, políticos e escritores que se projectavam já num futuro independente e mais africano para Angola.

O Lubango “pecava” pelo facto de ser uma cidade demasiado “branca”, e por isso mais afastada dos cânones de quem defendia uma Angola mais mestiça, mais crioula, quando não mais negra.

Comparando esta cidade com Benguela e Luanda, as cidades modelo para os escritores angolanos, vamos ver quão mais nova era ela e, portanto, resultado de um tempo muito mais curto de maturação, contando com menos tempo disponível para as populações em presença, muílas e colonos, interagirem e absorverem mutuamente aspectos das suas culturas.

Há também a ressalvar aqui o facto de, por um lado, a colonização do Planalto ter sido 12 efectuada com famílias já constituídas, e por outro lado, o grupo etno-linguístico local ser profundamente tradicionalista, o que reduziu a apetência dos dois grupos em presença por ligações exogâmicas.

Apesar de tudo, os chicoronhos eram conhecidos pelo amor que tinham pela sua terra natal, o bairrismo e o angolanismo das suas gentes, sobretudo das que ali viviam já há várias gerações. Seria esta também a herança, para o bem e para o mal, que enformou a vida de Amélia Veiga?

Trinta anos volvidos, eis que o último silêncio de Amélia é quebrado com a paz que finalmente vê Angola como um destino. E como sempre, ela emerge dele para presentear a terra angolana e os

“[…] homens iguais / transparentes e lúcidos / […]”,

esse homem novo por quem ela anseia, com mais um livro, o derradeiro (?) poema para um tempo de paz que se quer derradeiro.

Nunca mais os silêncios encontrarão eco em Amélia.

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