“Os Silêncios de Amélia”
(Prefácio de Jorge Arrimar
para o livro “Lágrimas da Memória” de Amélia Veiga)
Era um dia ensolarado de
Novembro de 2005. Jacques dos Santos, meu amigo e editor da Chá de Caxinde,
encontrava-se em Lisboa, numa escala da sua viagem entre Angola e o Brasil. No
bolso trazia uma série de projectos, entre eles a publicação neste último país
de uma antologia de contos de escritores da Lusofonia, confidenciou-me.
Não o via desde Agosto,
quando me deslocara a Angola para participar no I Encontro de Escritores
Angolanos, que teve lugar na minha província natal, a Huíla.
Depois do abraço
angolanamente expressivo e afectivo, soube que o encontro era alargado a outras
pessoas, aos escritores Alberto Oliveira Pinto, autor de Mazanga, e Elizabeth
Vera Cruz, autora d’ O Estatuto de Indigenato.
Mas a grande surpresa foi
encontrar alguém que não via há mais de trinta anos, Amélia Veiga, que eu
conhecera no Lubango, da minha juventude. Foi bom reencontrá-la e saber que
tinha um livro de poesia para ser publicado pela Chá de Caxinde, após “trinta
anos em que eu me refugiei, trinta anos em que me isolei”, como dizia, mesmo
sabendo que, apesar de estar isolada há tanto tempo, ainda havia quem não se
tivesse esquecido dela e do papel importante que tinha tido na literatura que
na altura se fazia em Angola, nas já recuadas décadas de 60 e 70.
Disso é testemunha as
antologias e referências à sua obra que iam sendo publicadas por esse mundo. À
Chá de Caxinde coube a honra de a fazer regressar a Angola, reapresentando-a
aos leitores que, decerto, desconhecem o seu percurso como poetisa deste país,
desta terra que assumiu como sua e onde tentou conquistar legitimidade, não
obstante os prolongados silêncios a que foi obrigada por circunstâncias
adversas.
Este livro é, então, um
livro de reencontro e de afectos, mas também de despedida. Amélia Veiga nasceu
para a poesia em Angola e esperou por Angola para se despedir da poesia, basta
atentar nos poemas com que encerra “Lágrimas da Memória”, intitulados
“Testamento” e “Epitáfio”.
O penúltimo é dedicado aos
seus netos:
“Aqui estou livre e
despojada/na certeza reconfortante/e absurdamente feliz/de não ter nada…/E nada
tendo para além de mim/eu sou a minha própria herança/que vos deixo/[…]”;
o último é também o acto
final da longa peça que começou a ser encenada nos anos 60, no palco da vida e
da poesia que o vale do Lubango foi para Amélia Veiga, e do qual, confessa-nos
a A.,
“[…] restam apenas/memórias
roxas ou lilases/que são da morte cores preferidas/e num álbum sem
legendas/imagens silenciosas e fugazes/de uma vida que aconteceu/[…]”.
Os poemas deste livro são o
grande poema com que Amélia dá por encerrado o ciclo da sua vida literária,
iniciada em 1962 com a publicação de “Destinos” pela editora Imbondeiro.
Foram os escritores
Garibaldino de Andrade e Leonel Cosme que a encorajaram a publicar os poemas
que ia fazendo e que, por timidez, guardava na gaveta… desde a adolescência.
Alguns dos poemas deste seu primeiro livro foram escritos nessa fase da sua
vida.
E quando a sua poesia
passou a ser do leitor de livros que tinham a chancela da Imbondeiro, que não
eram poucos, Amélia Veiga percebeu que tinha valido a pena partilhar as suas
emoções com quem a quis ler.
Bem recebida pela crítica e
com muitos leitores a testemunharem-lhe pessoalmente o seu agrado, a poetisa
sentiu-se motivada a enviar mais um projecto de publicação à Imbondeiro, que
logo foi aceite.
“Poemas” é o seu
segundo título, que viria a receber da Câmara Municipal de Sá da Bandeira o
prémio “Fernando Pessoa”.Recebido com entusiasmo pela crítica de Angola e
Portugal, “Poemas” é rapidamente esgotado, o que não era vulgar na época.
Mesmo nos nossos dias, são
raros os livros de poesia que se esgotam depressa. Ficavam assim garantidas as
suas regulares participações em iniciativas da editora huilana. Poemas seus
foram seleccionados para a “Antologia Poética Angolana-I”, na qual se
encontravam representados os nomes maiores da poesia de Angola. Nesse conjunto
de poetas seleccionados encontramos apenas dois nomes no feminino, Alda Lara,
falecida pouco tempo antes, e Amélia Veiga.
E aquela foi, decerto, uma
fonte inspiradora para esta última, até na forma dorida, exaltada, como
anunciam ambas a sua paixão pela terra e pelas gentes africanas, exultando com
elas na sua beleza natural e alegria espontânea e sofrendo com elas nas suas
desgraças e desventuras.
Alda Lara publicou um
poema, cujo título “Testamento”, deixava intuir uma partida e um legado; Amélia
Veiga deixa-nos também o seu “Testamento”, em que anuncia a sua despedida da
vida literária, e nos deixa a sua poesia como herança. Alda Lara e Amélia
Veiga, juntas, mesmo quando a primeira passou a estar definitivamente ausente,
e se a primeira deixara um eco dorido pelo drama da vida,
“Trago os olhos naufragados
/ em poentes cor de sangue...”7,
a segunda acalentava ainda
ventos de liberdade quando escrevia
“das entranhas da terra /
irrompe um vento alucinado que varre… varre / as folhas secas do mundo…”.
Mas o tempo não era de
feição para quem não se comportava de acordo com os critérios definidos por um
poder político marcadamente autocrático, a guerra colonial intensificava-se e a
PIDE começava a estar cada vez mais vigilante e castradora também da actividade
literária.
A “Antologia Poética-II”,
que fora adiada, por prudência, pois a polícia do Estado rondava cada vez mais
a Editora, acabaria por não sair a público e a própria Imbondeiro foi
definitivamente encerrada em 1964.
Para Amélia Veiga (e para a
maior parte dos poetas e escritores representados nas antologias e colectâneas
da Imbondeiro) seguir-se-ia um tempo de silêncio, só quebrado uma década
depois, com a revolução de 25 de Abril de 1974.
E é neste breve intervalo
de todas as guerras que Amélia reaparece com mais um livro, bem a propósito
intitulado “Libertação”, o que a levaria a ser colocada num lugar de relevo
entre “as nossas melhores poetisas”.
A sua poesia é intuitiva e
profundamente humanista, deixando reflectir um ideal de justiça que a A. sabia
dever existir entre os homens. Ela revela-se rica pela exploração, ao nível de
conteúdo, das contradições que definem a complexa condição humana, ao mesmo
tempo que lança um apelo à necessária comunhão entre os homens.
Trata-se, também, de um
lirismo que não enjeita deixar a nu certas chagas sociais de Angola ao tempo: o
analfabetismo, a fome, a desumanidade do contrato e dos castigos injustos. Mas
também deixa transparecer antecipadamente a sua apreensão sobre os dramas
terríveis que se abateram sobre a sua terra adoptiva, o que levaria Cândido
Beirante a formular o voto de que “tal profecia de futuros massacres se não
realiz[asse]”.
Infelizmente, a realidade
provaria o contrário e Angola submergiu numa guerra civil que conduziria ao
caos, à morte e à fuga de milhares de portugueses e angolanos. Amélia Veiga não
fugiria a esse destino, fugindo de uma Angola ameaçadora
“[…] grito pedras / balas
sangue morte / renúnciaamarga […]” mas levando com ela uma Angola de “[…]
manhãs radiosas / de sol entornado sobre a terra / e sobre as casas / do brilho
dos diamantes / no cacimbo das folhas […]”.
Infelizmente o intervalo de
paz entre uma guerra que acabava e outra que estava para começar foi muito
curto e Amélia voltou a perder-se num silêncio ainda mais longo que a foi
sufocando, sufocando de nostalgia, sufocando de saudade, sufocando de revolta
reprimida
“Neste chão de exílio /
Neste céu de espanto / […]”.
Este livro que agora Amélia
Veiga nos trás, não é um livro qualquer. É uma mão cheia de lágrimas que a
memória lhe legou e que ela nos deixa como uma salgada herança. Também um grito
de libertação, o grito que envolve o choro, o sofrimento sentido durante um
tempo demasiadamente longo em que a sua voz se silenciara.
Afinal o silêncio de muitas
outras vozes que a História teimosamente foi abandonando nas margens do seu
sinuoso curso. Valerá por isso avançar um pouco mais, alargar o campo onde
tradicionalmente se move um prefácio de um livro de poesia… porque, volto a
dizê-lo, este não é um livro qualquer. Ele cheganos directamente de um tempo
extinto, de uma época que, como todas as outras, não se limitou a passar, a ser
vorazmente engolida por Cronos.
Sobre esse tempo, fechou-se
uma forte e pesada porta de silêncios, mitos e preconceitos. Destes se poderá
dizer que, como a Fénix, das suas cinzas nasceram outros que por aí estão para
durar.
Façamos pois, deste livro
de Amélia Veiga, uma descomplexada janela para um tempo que também o foi de
homens e mulheres de qualidade, a todos os níveis, como afinal o são todas as
épocas da História da Humanidade, independentemente da classificação, do
rótulo, que venham a ganhar depois.
Por isso, a memória que a
nossa A. reclama é, no fundo, uma parte da nossa memória colectiva e
inscreve-se nos meados do século XX, tendo por seu espaço, por seu campo de
acção que só a memória ainda preserva, a terra africana, o angolano chão que
Amélia acariciou
“num êxtase / de amor e
mágoa”
e que a fez perguntar com a
angústia de quem se havia dado completamente
“[…] que cheiro que marca /
que sentimento / ficou de mim? / […] / Que memórias escorrem / nas paredes /
das casas onde vivi? / Que mãos / retêm o calor / dos afectos que partilhei? /
[...] / que cheiro que marca / que sentimento / te ficou de mim?”.
Valerá a pena, então,
falarmos um pouco desse campo onde as energias de Amélia Veiga encontraram
terreno fértil para a sementeira da sensibilidade e dos afectos que a sua
poesia traduz. Falemos, pois, da cidade do Lubango (ao tempo Sá da Bandeira)
“com seu encanto e seu recato, as suas ruas de grandes vivendas com jardins, as
suas ruas direitas, os seus Largos largos.
Enfeitada com flores, com sepatódias, com canteiros. Limpa e ordeira. Com
carros modernos pelas estradas. Com seus passeios espaçosos, quadriculados,
onde se caminhava à vontade. Rodeada de paisagens grandiosas, inexploradas,
múltiplas e variadas. Num país ainda a desbravar.”
Deste modo, melhor se
poderá perceber em que meio despontou e soube medrar a nossa poetisa. E talvez
importe recuar um pouco no tempo para perceber que o Lubango, apesar de ser
jovem, pois a sua elevação a cidade havia ocorrido apenas a 31 de Maio de 1923,
já demonstra alguma maturidade cívica e política.
O inconformismo que os seus
habitantes algumas vezes demonstraram, foi revelador de uma atitude
anti-regime, como provaram durante o governo da Huíla tutelado por Henrique
Galvão (1929). Numa demonstração clara do agastamento generalizado pela
exoneração intempestiva e injusta do governador mais progressista que haviam
tido,14 os chicoronhos organizaram a “mais imponente [e] grandiosa manifestação
até [ali] feita [no] Planalto”, e cerca de trinta anos depois, votariam por
maioria, em Humberto Delgado, candidato da oposição nas presidenciais
portuguesas de 1958.
Do ponto de vista cultural,
é sobretudo a partir da década de 50 que o Lubango conhece um desenvolvimento
expressivo, de pendor universal e cosmopolita. O seu dinamismo era evidente e
conjuntamente com Luanda, foi umas das cidades angolanas que primeiro tiveram
Liceu.
Pela capital da Huíla
passaram personalidades marcantes da intelectualidade e da política angolanas,
como Pepetela, Costa Andrade, Viriato da Cruz, Lúcio Lara, Aires de Almeidas
Santos, Manuel Rui, António Neto. Este último, natural do Lubango, formouse em
Matemática e foi considerado um dos melhores poetas da sua geração.
Em 1960 encontram-se ali a
residir personalidades cultural e intelectualmente dinâmicas, como Garibaldino
de Andrade (professor e escritor reconhecido do Neo-realismo), Leonel Cosme,
escritor e dinamizador cultural, Maurício Soares (escritor), Henrique Abranches
(escritor e antropólogo), Tomás Jorge (escritor), 10 Acácio Barradas
(jornalista e político), Onésimo Silveira (escritor e político caboverdiano) e,
naturalmente, Amélia Veiga. E é também nesta década que surge o Cineclube da
Huíla, o Círculo de Cultura Musical, o Atelier Livre da Artes Plásticas, o
Teatro Experimental de Sá da Bandeira, o Museu da Huíla, a delegação da
Sociedade Cultural de Angola (com sede em Luanda), os Estudos Gerais
Universitários (1963) e as Editora Imbondeiro (1960).
Esta última rapidamente se
converteria, porventura, no mais amplo e fecundo movimento editorial que Angola
conheceu, tendo começado com um boletim informativo, intitulado Notícias de
Imbondeiro, e uma colecção de bolso designada Colecção Imbondeiro.
Na cidade, as publicações
Imbondeiro eram vendidas em livraria própria, mas a sua acção seria alargada ao
mundo de língua portuguesa, com publicações vendidas em regime de assinatura.
Neste contexto de evidente efervescência cultural teve lugar o I Encontro de
Escritores de Angola, que decorreu entre 19 e 27 de Janeiro de 1963.
Tratou-se de uma iniciativa
pioneira que resultou da troca de ideias entre duas personalidades importantes
da cultura huilana da época, Garibaldino de Andrade e Leonel Cosme, ambos
ligados à fundação da editora Imbondeiro, à qual logo se associou o jornal
“ABC” de Luanda.
No terreno não faltou o
apoio, desde a primeira hora, da Câmara Municipal, cujo presidente era o
dinâmico major José Ramos Camisão, e do professor Albino Fernandes de Sá. Coube
a este último estabelecer contactos no sentido de reunir na capital da Huíla
uma representação da cultura portuguesa, de modo a alargar o âmbito do debate
que se colocava na altura: “O que se entende por cultura angolana”.
Nessa época, havia quem
entendesse o conceito de cultura angolana (e naturalmente de Literatura 11
Angolana) como “algo esfumado e movediço”, levando a uma discussão que se
prolongou por muitas sessões, durante nove dias, por um conjunto heterogéneo
individualidades, dos quais vinte e nove eram escritores de Angola (naturais e
residentes).
Durante o Encontro foi
lançada a “Colecção Mákua”, para a qual se projectava uma periodicidade
trimestral, em mais uma iniciativa editorial da Imbondeiro. Também nesta
colecção Amélia Veiga estaria representada.
Contudo, nada disso foi
suficiente para que os chicoronhos viessem colher algum crédito quanto ao seu
passado político e nem sequer o seu dinamismo cultural granjeou para a sua
cidade grande protagonismo em Angola.
Na história da literatura
angolana, as referências à cidade do Lubango são escassas, quer nos roteiros,
quer nos temas abordados, quer ainda como local de actividade literária. Uma
das explicações para tal situação pode residir no facto de o peso da sua
população, na época colonial, ter sido predominantemente de origem europeia, o
que fazia dela uma urbe pouco consentânea com os valores que, sobretudo nas
últimas décadas dessa época, defendiam os intelectuais, políticos e escritores
que se projectavam já num futuro independente e mais africano para Angola.
O Lubango “pecava” pelo
facto de ser uma cidade demasiado “branca”, e por isso mais afastada dos
cânones de quem defendia uma Angola mais mestiça, mais crioula, quando não mais
negra.
Comparando esta cidade com
Benguela e Luanda, as cidades modelo para os escritores angolanos, vamos ver
quão mais nova era ela e, portanto, resultado de um tempo muito mais curto de
maturação, contando com menos tempo disponível para as populações em presença,
muílas e colonos, interagirem e absorverem mutuamente aspectos das suas
culturas.
Há também a ressalvar aqui
o facto de, por um lado, a colonização do Planalto ter sido 12 efectuada com
famílias já constituídas, e por outro lado, o grupo etno-linguístico local ser
profundamente tradicionalista, o que reduziu a apetência dos dois grupos em
presença por ligações exogâmicas.
Apesar de tudo, os
chicoronhos eram conhecidos pelo amor que tinham pela sua terra natal, o
bairrismo e o angolanismo das suas gentes, sobretudo das que ali viviam já há
várias gerações. Seria esta também a herança, para o bem e para o mal, que
enformou a vida de Amélia Veiga?
Trinta anos volvidos, eis
que o último silêncio de Amélia é quebrado com a paz que finalmente vê Angola
como um destino. E como sempre, ela emerge dele para presentear a terra
angolana e os
“[…] homens iguais /
transparentes e lúcidos / […]”,
esse homem novo por quem
ela anseia, com mais um livro, o derradeiro (?) poema para um tempo de paz que
se quer derradeiro.
Nunca mais os silêncios
encontrarão eco em Amélia.