Satsang, doce e profundo mistério
Instituição Correcional Federal de Englewood, Colorado, 1997
Publicado inicialmente no Boletim da Fundação Gangaji em 1997
Esta é uma história sobre o doce e profundo mistério do satsang; a história de
uma vida, inevitável e secretamente a serviço da Verdade, que é simplesmente
outro nome para "vida". Esta é a história do satsang aparecendo como Inferno.
Esta é uma história verdadeira, e estas palavras certamente não lhe farão
justiça. Mesmo assim, precisa ser contada.
Gangaji me descobriu em uma prisão no Colorado
em junho de 1994. Até ela aparecer, que eu me lembre, eu só tinha conhecido
desesperança e desespero, um desespero tão denso e profundo que parecia ser a
própria verdade.
No momento em que a conheci, num instante fora
do tempo, tudo se acabou. Ao olhar em seus olhos, vi somente ela, que viu
somente a mim; que viu somente a si mesma, que não viu um outro em mim.
Naquele momento, sem restrição ou vacilação,
ela expôs para mim o âmago absoluto e desnudo de seu ser, que está para além de
toda a possibilidade de negação, o âmago de todo o Ser. Instantaneamente, em um
trilionésimo de um instante, ela, que vem de mãos vazias; ela, que não tem
absolutamente nada para dar, me deu tudo.
Retomando o juízo (estranho com que freqüência
esse movimento é usado como sinônimo de um retorno à sanidade), descobri que o
"eu" que chamava a si mesmo John Sherman não era nada mais alem do fato de
estar total e desamparadamente apaixonado por ela; tão apaixonado que parecia
que a respiração não tinha outro propósito senão amá-la; tão apaixonado que
parecia que a respiração pararia se ela não olhasse para mim.
Parecia que não restava literalmente mais nada
de mim, a não ser meu amor por ela. Já que eu não podia me sentar aos pés dela
esperando que seu olhar acidentalmente pousasse sobre mim, tive que achar algum
modo de chamar a sua atenção, de tornar-me agradável a ela. Caso contrário, com
certeza eu morreria. Então lhe escrevi cartas, cartas de amor, uma após outra.
Disse-lhe que a adorava. Contei-lhe sobre o fulgor maravilhoso de visão,
revelação e mistério em que agora consistia a maior parte da minha experiência.
E ela leu minhas cartas para vocês, e me honrou com extravagância. E ela me
amou.
Como é possível? Parecia um milagre, e ainda é.
Ah, como me deleitei no esplendor em que fui tão injustificavelmente banhado.
Eu não queria mais nada, senão morrer em seu amor. O tempo todo, é claro,
sabendo dentro de mim mesmo que as cartas, as visões, as revelações, o
mistério, o esplendor, a alegria, tudo isso era só um reflexo do fogo em que o
"eu", que tanto anelava por ela, estava sendo incinerado.
Eu sabia que, em verdade, só minhas cinzas
poderiam satisfazê-la. Tanto melhor. Como eu estava feliz ao queimar, como
estava orgulhoso de minha resolução de provar meu amor. E então a mente, que
jazera à espera na toca profundamente oculta da mentira, abriu em mim o coração
de seu apetite insaciável, e veio a mim como que por magia, como a mais
intensa, rica e deliciosa satisfação de seus desejos mais fundamentais.
E eu, tolo que sou, disse: "Sim, é isto que eu
quero, é isto que eu preciso ter." Imediatamente, o Paraíso se tornou Inferno.
Imediatamente, ela, que é só amor, generosidade, calor e boas-vindas, tornou-se
aço inflexível, impiedoso, frio e penetrante. Uma vez, durante o mais doce
momento de meu caso de amor com o fenômeno da Realização, escrevi-lhe
advertindo-a de minha fraqueza e lhe implorei que mantivesse um olho aguçado
sobre mim, que nunca largasse a minha mão, senão eu poderia cair e me perder.
Ela nunca tirou os olhos de mim, seu amor nunca fraquejou.
Ela é a Verdade no âmago de toda minha
falsidade. Lutei freneticamente, com unhas e dentes, para escapar dela, para
escapar ao Inevitável, e ela jamais se moveu. Rosnei como uma fera; acusei-a de
esperar que eu me conformasse a um padrão mais elevado do que o que usava com
todos os demais, e ela perguntou: "E daí?"
Eu lhe disse: "Está bem, vou parar, mas parar
vai doer. Saiba que você será a causa desta dor.”
E ela respondeu: "E daí?"
Desejei com todo meu coração que nunca a
tivesse conhecido, que pudesse voltar ao conforto familiar do desespero, mas
até o desespero me foi negado. Espojei-me e definhei na inutilidade de todo
esse desejo, e ela perguntou: "E daí?"
Um dia, em junho, cerca de um ano depois de
nosso primeiro encontro, ela entrou no salão do satsang flamejante de fúria,
terrível em sua beleza. Ela me denunciou e me difamou. Insultou minhas carta,
dizendo a todos os presentes que, por mais primorosas e comoventes que fossem,
não significavam nada. Nada. A pessoa que escrevera aquelas cartas tinha traído
tudo aquilo que lhe fora dado tão livremente; tinha virado as costas para o
amor e a vida, rendendo-se à cobiça e à luxúria.
Quando ouvi a fita com a gravação daquele
satsang, recusei-me a ate mesmo considerar o convite para morrer que brilhava
tão claramente no centro de sua fúria. Preferi imaginar que tinha perdido tudo,
que tinha sido abandonado, que não tinha feito nada para merecer aquilo, que
ela não entendia nada... e por aí afora.
E ela perguntou: "E daí?"
Mas havia muitos corações presentes aquela
noite que sabiam para quem, realmente, estava sendo apontada aquela espada
ardente, forjada nas chamas do refugo de minha traição. Muitos viram aquela
espada e imediatamente reconheceram que estava apontada para eles. Deram-lhe
boas-vindas em seus corações, ansiando apenas por ser verdadeiros; desejando
que ela penetrasse as camadas mais tenras e sutis que sustentam a mentira de
que há alguém que anseia, alguém que sofre, alguém para ser verdadeiro ou falso.
Isto é Satsang.
Este é o coração despedaçado e aberto através
do qual brilha a Verdade pura e clara.
Quem estava oferecendo satsang aquela noite?
Quem estava recebendo? Quem sabia que mistério estava se abrindo naquele
instante?
Como somos seduzidos pela idéia de que sabemos
o que está acontecendo, de que é possível saber! Como estamos pouco dispostos a
abrir nossos corações à imensidão do imaculado não-saber, da ausência de um
alguém para saber, da impossibilidade de saber: nada escondido da visão.
Pensando que sabemos com que o mestre se parece, nos cegamos para o esplendor
do Guru resplandecente, além do qual nada existe. Pensando que sabemos o que é
servir, servimos somente ao ego.
Pensando que sabemos o que é rendição, somos
paralisados pelos venenos do pensamento, empedernidos demais para abrir nossos
braços em verdadeira rendição. Pensando que sabemos o que é o amor, privamo-nos
do amor.
Pensando que sabemos o que deve ser Satsang,
nos recusamos a ver que só Satsang existe. Vemos o sofrimento, o horror, a
crueldade do mundo, e imaginamos que podemos trazer a paz, que podemos trazer
Satsang para o mundo, jamais suspeitando que o mundo é Satsang, exatamente como
é. Não há nenhum mundo separado de você, nenhum "você" à parte do mundo. Todo o
horror, toda a crueldade, toda a violência, todo o sofrimento é só seu, é você,
é o Ser.
O mundo clama por ser liberado de "mim", de
todos os "mins" que tanto o sobrecarregam e atormentam. Papaji diz que a única
maneira em que podemos ajudar consiste em não gerar a um único pensamento.
Por que é tão difícil ouvir isto, tão fácil
ignorar? Pensando que sabemos o que é paz, criamos somente violência e
discórdia. Só a paz produz paz. Nesta vida privilegiada que você foi chama de
"sua vida", o satsang apareceu para se revelar a si mesmo.
Nada que você tenha feito produziu isso. Você não pode viver satsang, o satsang
vive você. Portanto, deixe o satsang viver esta vida, livre de interferência e
suposições, livre de você. Será assim de qualquer maneira, sem a sua rendição,
com ou sem você.
Fique quieto, esteja em paz. Deixe este milagre
tomar você por inteiro. Veja que todas as idéias, sem exceção, são desprezíveis
neste momento. No coração silencioso, aberto e rendido, o satsang está vivo, e
vê somente a si mesmo em sua miséria ou em sua felicidade, em sua rendição ou
em sua rebelião, no Paraíso ou no Inferno.
Satsang não vê nenhuma mente, nenhum esforço,
nenhum você, nenhum eu, e, para o satsang, pouco importa qual coração se abre
para dar boas-vindas à sua espada. Em satsang, não há corações abertos ou
corações fechados; há apenas Coração. Em satsang, não há duas vidas; há apenas
Vida. Em satsang, não há satsang e o mundo, não há uma porta que se abre para o
salão do satsang, atrás da qual assoma o mundo; há apenas satsang: permanente,
sempre-presente, Eterno e incontrolável. Apenas Amor. Tudo mais é imaginação.
Fique quieto. Você é esse Amor, esse Coração. Desapareça nisso. Nada mais
importa.
© 2002-2003 John Sherman All rights reserved .
|