U. G. Krishnamurti
fonte: http://www.well.com/user/jct/
tradução: J.C.Cavalcanti
Obs. Os textos em vermelho itálico, entre parênteses, são observações minhas.

Não saber é seu estado natural

Pergunta: De nossas conversas anteriores com você fica evidente que o homem tem uma relação errada com o conhecimento de si mesmo e do mundo. O que exatamente você entende por conhecimento?

U.G.:
Conhecimento não é algo misterioso ou abstrato. Eu olho esta mesa e me pergunto: "O que é isto?". O mesmo faz você. Conhecimento é apenas nomear as coisas. Isso lhe diz que isso é uma "mesa", que eu "estou feliz" ou "miserável", que "você é um iluminado e eu não sou".

Há outra coisa para o pensamento além disso? O conhecimento que você tem do mundo cria os objetos da sua experiência. A existência ou não-existência real de alguma coisa "lá fora" não é algo que você pode determinar ou experimentar por si mesmo, a não ser através do auxílio de seu conhecimento. E esse conhecimento não é seu; é algo que você e seus ancestrais acumularam ao longo do tempo.
O que você chama "ato de conhecer" não é outra coisa senão essa memória acumulada. Você lhe acrescentou ou modificou algo, mas essencialmente ele não lhe pertence, absolutamente. Não há nada dentro de você a não ser a totalidade do conhecimento que você acumulou; isto é o que você é.

Você não pode mesmo experimentar diretamente a realidade do mundo em que você está funcionando, muito menos do "outro" mundo. Não há nenhum "outro mundo" além do espaço e tempo; isso é invenção sua, baseado em vagas promessas dos homens sagrados. Nosso senso de valor resulta do mundo que nos foi imposto; e nós temos que aceitar esse mundo.

Pergunta: Então nosso sistema de crenças também é baseado nessa memória... ?

U.G.:
Crença também não é uma abstração; é uma extensão do mecanismo de sobrevivência que age há milhões de anos. Crença é como qualquer outro hábito: quanto mais você tenta controlar e suprimir, mas forte ele fica. Sua pergunta implica que você quer ficar livre de algo; neste caso é a crença.

Primeiro: por que você quer se livrar dela? Tudo o que você fizer sobre isso apenas lhe dará energia. Tudo o que você fizer é inútil. Por que isso se tornou um problema para você? Você não está em posição para aceitar ou negar o que eu estou dizendo. Provavelmente você tentou algum tipo de sistema para controlar seus pensamentos e crenças, e isso tudo falhou. Repetindo mantras, fazendo yoga, ou rezando, nada disso ajudou. Por alguma razão, você não é capaz de controlar seus pensamentos. Isso é tudo.

Pergunta: Mas a repetição de mantras e outras técnicas sagradas parecem aquietar a mente...

U.G.:
Você não pode nem observar seus pensamentos, muito menos controlá-los. Como poderia você observar seus pensamentos? Você fala como se houvesse uma entidade em você separada deles. Isso é uma ilusão! Seus pensamentos não são separados de você; não há um pensador separado.

O pensamento não pode prejucar você: é essa sua estrutura separativa, que tenta controlar, dominar, censurar e usar o pensamento, que é o problema. O pensamento por si mesmo não pode fazer nenhum mal. É apenas quando você quer fazer algo com ele que você cria problemas para si mesmo.

Pergunta: Ouvir você também parece criar problemas para mim.

U.G.:
Você diz que está escutando, mas você não está escutando nada, a não ser seus próprios pensamentos. Não tenho ilusão sobre isso. Você não pode escutar a mim nem a ninguém; é inútil tentar persuadir-me que você está realmente atento, ligado, escutando. Eu não sou bobo.

Pergunta:
Não é tão óbvio para mim que eu não o esteja escutando. Parece que simultaneamente eu o ouço e também estou pensando. Isso é possível?

U.G.:
Isso é impossível. Há apenas uma ação possível para você: pensar. O nascimento do próprio pensamento é ação. O pensador que diz que está observando o processo de causa-efeito é ele próprio o pensamento.

O pensamento cria um espaço entre o pensador e seus pensamentos, e então diz a si mesmo: "Eu estou observando meus pensamentos." Isso é possível? Esquecendo o que aconteceu no passado, tente observar seus pensamentos neste momento. Veja, estou pedindo para você fazer algo bastante simples. Você me dirá como observar o pensamento, eu serei seu discípulo; eu lhe ficarei muito agradecido. Ao invés de observar seu pensamento, observe a mim.

Se você repetir um mantra, isso é pensamento. A repetição do mantra é outro pensamento. A idéia de que esses pensamentos repetitivos não foram bem sucedidos para gerar o estado que você queria é outro pensamento, assim como a idéia de que você precisa mudar de mandra ou praticar outra técnica que funcione melhor. O que é o pensamento além disso? Eu quero saber.

Pergunta: Mas todas as religiões encareceram a importância de suprimir e controlar pensamentos indesejáveis. Do contrário estaremos descendo ao nível dos animais.

U.G.: 
Temos sofrido lavagem cerebral por séculos por homens sagrados que afirmaram que precisamos controlar nossos pensamentos. Sem pensar você seria semelhante a um cadáver. Sem pensar os homens sagrados não teriam como nos dizer para controlar nossos pensamentos. Eles quebrariam; pois tornaram-se ricos dizendo a outros para controlar seus pensamentos.

Pergunta: Mas certamente há diferenças qualitativas no modo como os pensamentos são controlados.

U.G.: 
Essas distinções são arbitrárias. Pensar é parte da vida, e vida é energia. Tomar uma cerveja ou fumar um cigarro é exatamente o mesmo que repetir preces, palavras sagradas, e escrituras. Ir a um bar ou ao templo é exatamente o mesmo; é um tipo de droga. Você confere significado especial a preces e templos, mas isso é apenas um preconceito seu, que o faz sentir-se superior aos que frequentam bares e bordéis.

Pergunta: Então tudo isso é uma tentativa de modificar de algum modo meu condicionamento...

U.G.: 
Condicionamento é tradição. A palavra em sânscrito é samskara. Tradição é o que você é - aquilo que você chama de "eu". Não importa quanto você tente modificá-lo, ele continua. Na vida tudo é impermanente, e a tentativa de dar continuidade ao condicionamento - e isso é baseado no pensamento - é uma coisa patológica. Você trata o psicológico e o patológico como se fossem coisas diferente; mas na verdade tudo isso é patológico. Seu samskara, o condicionamento que faz você se sentir separado do mundo, é patológico.

Onde estão os condicionamentos de que você fala? onde estão situados os pensamentos? Eles não estão no cérebro. Os pensamentos não são produzidos pelo cérebro. Ao contrário, o cérebro é como uma antena, captando pensamentos de um certo comprimento de onda, de uma esfera comum de pensamento. Suas ações, seja pensando em Deus ou batendo numa criança, resultam da mesma fonte - pensar. Os pensamentos em si não fazem nenhum mal. Somente quando você tenta usar, censurar e controlar esses pensamentos para realizar algo é que seus problemas começam.

Você não tem outro recurso a não ser pensar para obter o que você quer neste mundo. Mas quando você procura para obter o que não existe - Deus, amor, bênção, etc. - pelo pensamento, você consegue apenas por um pensamento contra outro e criar miséria para você e o mundo. Quando a estrutura do pensamento, a serviço do medo e da esperança, não encontra o que procura, ou fica em dúvida, ele introduz o que você chama "fé".

Onde está a necessidade de crença, ou sua outra face fé? Quando suas crenças falham, dizem-lhe para cultivar a fé. Em outras palavras, você precisa ter esperança. Quer você esteja buscando Deus, uma bênção, paz da mente, ou coisas mais tangíveis, felicidade, você termina confiando na esperança, crença e fé. Essas dependências são os sinais de sua falha em obter os resultados que você deseja.

Pergunta: Qual é a relação entre pensamento condicionado e desejo?

U.G.: 
Seu desejo, assim como seus pensamentos em geral, devem ser suprimidos e controlados a qualquer custo - essa abordagem apenas enriquece os homens sagrados. Por que diabo você quer chegar a esse estado que você denomina "sem desejos"? Para quê? Posso assegurar-lhe que quando você não tem desejo você será carregado como um cadáver para a sepultura. Os homens sagrados nos disseram que ter desejos é errado; eles precisam ser suprimidos ou convertidos em um tipo mais alto de desejo.

Isso é bobagem (It is hogwash). Ou você os realiza seus desejos, ou você não consegue realizá-los. Esse o problema. Em qualquer caso o desejo surgirá. Tentar não fazer nada também é inútil, pois isso (isto é, não fazer nada) é parte de sua estratégia geral para conseguir algo.

Ele tem que se queimar. O samskara, ou condicionamento, embora capaz de ser queimado, não pode ser visto. Você não pode ver um desejo.  Ver um desejo irá cegá-lo. Sua cultura, sua filosofia, sua sociedade o condicionou, e agora você pensa que pode mudar ou, de algum modo, modificar esse condicionamento. Mas isso é impossível, pois você é a sociedade.

Pergunta: Nós não queremos ficar livres do condicionamento; isso é assustador de se imaginar, e nós ficamos muito inseguros.

U.G.: 
Todo pensamento que nasce tem que morrer. Isso é o que eles chamam a morte do desejo. Se um pensamento não morre, ele não pode renascer. Ele tem que morrer, e com ele você também morre (a falsa noção de um eu separado do pensamento cessa).

Mas, acontece que você não morre com cada pensamento, cada respiração. Você engancha cada pensamento no próximo, criando uma falsa continuidade; essa continuidade é que é o problema. Sua insegurança resulta de sua recusa em encarar a natureza temporária do pensamento. É um pouco mais fácil falar àqueles que tentaram fazer o controle do pensamento, através de práticas religiosas (sadhanas), porque eles verificaram a futilidade disso tudo e podem ver onde eles estão pendurados (where they are "hung up").

Pergunta:
Suponho, então que é a tradição e o condicionamento que criaram o dilema moral para nós... ?

U.G.: 
Apenas o homem que é capaz da imoralidade pode falar de moralidade. Não existe essa coisa para mim - imoralidade. Assim, eu não posso sentar e pregar moralidade. Isso é tudo. Eu não tomo posições morais absolutamente. Aquele que fala de moral, amor e compaixão é um impostor.

Veja, sua moralidade ou ausência dela não tem importância comparado com o fato de que você está morto. Você está sempre operando dentro de através de sua memória morta. Memória não é mais que os mesmas velhas coisas sem sentido repetindo-se continuamente.  Tudo o que você sabe, ou pode saber, é memória, e memória é pensamento. Seu pensamento incessante é dado apenas por essa continuidade.

Por quê você tem que fazer isso todo o tempo? Isso não vale a pena; você está se desgastando. Quando houver necessidade, pode-se compreender: por que você tem que se separar você mesmo de suas ações (e pensamentos)? É por isso que você  fica dizendo todo o tempo: "Agora estou feliz", "Agora estou solitário". Por quê? Você está constantemente monitorando e censurando suas ações e sentimentos: "Agora eu sinto isso, agora eu sinto aquilo"; "Eu quero ser isso; eu não devia ter feito aquilo".  Você está flutuando pelo passado e pelo futuro todo o tempo, desatento ao presente.

(continua)

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