Que significa ser "corintiano"?
Crônica da semana - JC Cavalcanti - 01/12/2005   

Disse-me um amigo sãopaulino que todo mundo nasce corintiano; alguns, porém, evoluem. Palmeirenses e santistas fazem piadas similares. É, porém, um fenômeno ainda pouco explicado o fato de que o Corinthians seja tão exageradamente querido pelos seus torcedores, chegando estes a serem conhecidos por "Fiel Torcida", aquela que acompanha o clube em todas as suas fases, talvez até mais nas piores, que foram muitas.

O que marca muito a história desse clube é a dificuldade para tudo. As vitórias costumam ser penosas, com o gol salvador nos momentos finais. Suas conquistas são suadas e questionadas ou desvalorizadas pelos rivais, que aplaudem com gosto suas crises e derrotas. Claro está que os corintianos retribuem generosamente essas críticas e gozações. 

Mas não é isso que quero comentar nesta crônica. Me importa saber o que significa "ser corintiano", porque isso é tão forte no emocional do torcedor, e talvez isso ajude a entender o que também significa "ser palmeirense", "ser sãopaulino",  ou "ser santista".

Para elucidar um pouco o assunto, veja alguns excertos da matéria sobre a origem do nome "Corinthians", de Luiz Roque:

"Na primeira década do século XX, veio ao Brasil um clube inglês de futebol chamado CORINTHIANS... essa equipe excursionou pelo Brasil e despertou grande entusiasmo. Assim foi que, em 1910, um grupo de esportistas que incluía vários italianos e diversos industriais, fundou, em São Paulo, o Sport Club Corinthians Paulista.
...
Finalmente, os paradoxos da História: esse time possui um nome exótico, muitas vezes mal pronunciado, com um TH e um N estranhos ao nosso idioma.
Tal nome se liga a uma cidade da Grécia distante (Corinto), que poucos conhecem, e designou, num passado remoto e esquecido, os aristocratas esportivos da Inglaterra. A entidade é, ainda, representada por um distintivo rebuscado, com uma âncora e 2 remos, que lembram, melhor, um clube náutico.

Mas esse conjunto de excentricidades formou, ao que parece, um todo apaixonante, para a população de São Paulo e do Brasil. E a equipe fundada em 1910 angariou, surpreendentemente, a mais numerosa torcida de São Paulo, e na qual predominam, exatamente, os segmentos mais simples e modestos do nosso povo. Que estranha ligação com o mundo e com o passado tem a torcida corintiana?"

Vejam que interessante: os "segmentos mais simples e modestos do nosso povo" identificam-se com um clube cujo nome tem origem estrangeira (é o único caso no Brasil, ao que eu saiba), nome esse que se liga, num passado distante, a aristocracia britânica, e, mais distante ainda, a uma das mais importantes e luxuosas cidades gregas da Antigüidade.

Paradoxalmente, essa imensa torcida concentra a maior parte das pessoas de origem humilde que residem no Estado de São Paulo, embora seja também numerosa na classe média. "Que estranha ligação com o mundo e com o passado tem a torcida corintiana?" — pergunta Luiz Roque.

Pergunta de difícil resposta. Afinal, como esse clube se apresenta e o que significa para os torcedores? Vejamos o que temos:

1) Um nome Corinthians , um nome bonito (do qual os rivais muitas vezes têm raiva), com apelo de ter origem estrangeira, com toda uma história por trás, desvelada pela matéria de Luiz Roque, já citada; 

2) A
s formas mais constantes em que esse nome é representado: 
    2.1) -a bandeira ( um distintivo rebuscado, com uma âncora e 2 remos ); 
    2.2) -o hino, muito bonito, mas meio triste, meio melancólico, em tom menor :

   "Salve o Corinthians, o campeão dos campeões...
    Eternamente dentro dos nossos corações
   Salve o Corinthians, de tradições e glórias mil,
   Tu és o orgulho dos esportistas do Brasil

   Teu passado é uma bandeira, teu presente é uma lição
   Fulguras entre os primeiros do nosso esporte bretão
   Corinthians grande, sempre altaneiro,
   És do Brasil o clube mais brasileiro."

Vejam que linguagem simples, popular, o poema usa para declarar um amor incondicional ao clube; ele não postula primazia absoluta entre os esportistas: ao contrário, o Corinthians "fulgura entre os primeiros" (ou seja, o poema não o declara como sendo o primeiro, e sim está entre os primeiros), para finalmente terminar dizendo que, justamente esse clube, cujo nome possui origem estrangeira, "é do Brasil o clube mais brasileiro".

Como curiosidade, essa expressão ( "o clube mais brasileiro" ) foi colocada na letra do hino porque, até à época em que o mesmo foi composto para a agremiação, e durante algum tempo depois, o time nunca tinha contratado jogadores estrangeiros, ao contrário do São Paulo e do Palmeiras.

Outro detalhe importante é que o hino não vincula ou identifica o clube com nenhum tipo de estrato ou estrutura social, ao contrário do hino do São Paulo, como veremos a seguir.

    2.3) -a séde social simples (na Zona Leste, a mais pobre da cidade de São Paulo), que nem sequer possui um estádio à altura de mandar os jogos do time (dizem os adversários que o clube fica na "Marginal sem número");

    2.4) -os centros de treinamento em locais periféricos, com instalações modestas. É o único clube homenageado com um nome de estação do metrô (Corinthians-Itaquera), naturalmente, num bairro proletário.

3) E outra característica fundamental, a meu ver, a principal, que encaixa e sustenta as demais: a origem humilde, de cunho popular, não identificada com nenhum grupo étnico em particular, com a fundação no Bom Retiro, em 1910. Vejamos o que diz o site oficial do Corinthians sobre isso:

"Era 1º de setembro de 1910 e cinco operários, Joaquiam Ambrósio, Carlos da Silva, Rafael Perrone, Antônio Pereira e Anselmo Correia se reuniram com mais oito rapazes e fundaram o 'Sport Club Corinthians Paulista' após assistir uma equipe de futebol da Inglaterra. O presidente escolhido por eles foi o alfaiate Miguel Bataglia, que já no primeiro momento afirmou: 'O Corinthians vai ser o time do povo e o povo é quem vai fazer o time'."

O clube assim fundado tem uma  história de luta, de incríveis adversidades, de garra, superação, paciência, dedicação, sacrifício, vitórias sofridas, atributos esses com nenhuma relação com a origem do nome Corinthians, que, como demonstra Luiz Roque, remonta aos aristocratas ingleses do século XIX e à luxuosa cidade de Corinto, na Antigüidade.

Os outros clubes não têm essa mesma saga. Basta olhar seus torcedores, que, pelo menos no caso do Palmeiras e do São Paulo provêm de uma extração econômica, bem como educacional, em média bastante superior.

Via de regra, a maior predominância dos torcedores do São Paulo encontra-se nos extratos mais privilegiados da população, em termos de nível cultural e sócio-econômico. Já o palmeirense tradicional, apesar da grande disseminação do nome do clube a outras faixas  da população (face a memoráveis conquistas do time de futebol em tempos passados), é, em maioria, de classe média e descendente de italianos, uma colônia lutadora e vitoriosa que ajudou a construir a história do Estado de São Paulo.

Outras diferenças podem ser observadas por exemplo nos seus estádios, maiores e mais bem localizados, e suas instalações e centros de treinamento, em geral muito mais bem equipados, chegando a ser referência internacional, no caso do São Paulo. Isso sem falar nos seus hinos, mais orgulhosos, ricos em adjetivos ufanistas, em tom maior e ritmo de marcha.

Vejam, por exemplo, um trecho do hino do Palmeiras (de Antônio Sergi e Gennaro Rodrigues):

"Quando surge o alviverde imponente
No gramado em que a luta o aguarda
Sabe bem o que vem pela frente
Que a dureza do prélio não tarda..."

Vejam que agora temos uma linguagem mais aguerrida, que fala de lutas e vitórias:

"E o Palmeiras no ardor da partida
Transformando a lealdade em padrão
Sabe sempre levar de vencida
E mostrar que de fato é campeão"

Recordemos que o Palmeiras, fundado em 1914 com o nome de Palestra Italia, foi patrocinado por industriais de origem italiana (destacando-se o Conde Matarazzo, que doou o terreno para a construção do Estádio Palestra Italia), que desejavam fundar um clube que representasse condignamente a pujança daquela tradicional colônia no Estado de São Paulo.

Se o Palmeiras representa grande parte da colônia italiana e seus numerosos descendentes, a simpática Associação Portuguesa de Desportos congrega em maioria os descendentes dos nossos colonizadores, e o Corinthians é idolatrado por uma imensa quantidade de torcedores de predominância bastante humilde, como ficam as classes sociais mais abastadas e tradicionais de nosso Estado? elas precisavam de um símbolo à altura para representá-los.

Este veio com a fundação do São Paulo, o último clube grande a ser fundado, somente em 1930 (com o encerramento das atividades futebolísticas do Clube Paulistano), bem depois do Palmeiras e mais ainda do Corinthians, e teve entre seus diretores e presidentes, ao longo de sua história, pessoas de proeminência na vida política e social do Estado.

O hino do São Paulo (com letra e música de Porphyrio da Paz) reflete a história de um clube de tradições fincadas na elite paulista. Vejamos um trecho da letra desse hino, uma marcha alegre e muito bonita:

Salve, tricolor paulista
Amado clube brasileiro
Tu és forte, tu és grande
Dentre os grandes o primeiro!
Tu és forte, tu és grande
Dentre os grandes o primeiro!

Oh! tricolor, clube bem amado
As tuas glórias vêm do passado.

Notem como a letra retrata o sentimento de um Estado pioneiro da industrialização no país, orgulhoso de suas riquezas, carro-chefe da economia brasileira. O time é "o primeiro". Em outro pedaço da letra, que não mostramos aqui, o poema se refere ao fato de que esse clube possui o mesmo nome do Estado de São Paulo, "ostentando-o dignamente", e, mais adiante, fala em "amor febril pela terra bandeirante".

O caso do Santos é diferente. Trata-se de um clube de origem humilde, que também tem um estádio bastante simples, e que, inicialmente, representava a cidade de Santos, mas hoje possui torcedores de inúmeras localidades e de todos os extratos sociais, dos mais pobres aos mais ricos, graças ao surgimento, naquela formosa cidade praiana, de numerosos jogadores geniais, gerando times que exibem uma verdadeira arte nos gramados,  exportando craques para o mundo inteiro.

O hino do Santos, não sei se o oficial, mas pelo menos o que é mais divulgado, pelo que pesquisei, é uma animada composição de Mangeri Neto e Mangeri Sobrinho, apesar do tom menor, e tem uma letra muito entusiasmada: 

Agora quem dá bola é o Santos
O Santos é o novo campeão
Glorioso alvinegro praiano
Campeão absoluto desse ano

Santos! Santos! GOL!...

Vejam que, apesar do Santos Futebol Clube ter sido inconteste nos gramados, como time de futebol, durante muitas temporadas, a letra é até modesta: "Glorioso alvinegro praiano, Campeão absoluto desse ano". Ela celebra a alegria da sua torcida perante sucessivas gerações de garotos de Santos e outras cidades, que, em contato com a Vila Belmiro (a "Vila Famosa"), de repente revelam uma incrível genialidade futebolística.

É bastante curioso que o Corinthians, não representando particularmente nenhuma cidade ou grupo étnico específico (coisa que não aconteceu com o São Paulo ou Palmeiras, ou mesmo o Santos, com  o São Paulo de certo modo se identificando com a cidade, e o Palmeiras representando a etnia italiana, e o Santos representando a simpática cidade litorânea, ao menos em sua origem), e talvez por isso mesmo, esse clube  tenha granjeado torcedores em toda parte do Brasil (assim como o Flamengo, no Rio, que também não se identifica com nenhuma etnia e nem representava, em sua fundação, sua cidade de origem).

Observem como são bem diferentes as histórias, tendências, e o tipo de energia ou aura que envolve cada um dos quatro clubes mencionados, e que, de certo modo, se relaciona bastante com a estrutura psicológica de seus torcedores.

Por isso, creio que se pode dizer que "ser corintiano" tem a ver com algum tipo de identificação psicológica com a saga desse Clube, ou seja, pessoas para as quais a vida se apresenta como um mar revolto, que é preciso atravessar a duras penas, com grande dose de perseverança, até de heroísmo, para depois de muito tempo obter algumas recompensas, tal como ocorre com as classes mais desfavorecidas, que levam vida dura e vivem de esperança, passam longas fases de dificuldades para conseguir, depois de muita luta, suas vitórias. 

O torcedor faz da vitória da equipe uma espécie de vitória pessoal dele, que lhe dá um sentimento agradável de triunfo sobre os adversários, e, por extensão, sobre as adversidades, predispondo-o a uma atitude mais favorável perante uma vida em geral difícil, que, em nosso país, injusto e concentrador de riquezas, não tem dado sinais claros e inequívocos de melhoras, malgrado a propaganda oficial do governo.

Claro está que essa atitude não é só do corintiano; como time de muitos milhões de torcedores, porém, as marchas e contramarchas do time têm um peso muito maior do que, por exemplo, teria perante sua torcida uma má campanha do São Paulo, cujo torcedor é comparativamente mais frio e desapaixonado, creio eu, na medida direta de uma vida de mais opções e significados. 

Daí a emoção transbordante, muitas vezes desproporcional, quando das conquistas e derrotas da agremiação, coisa que também existe, em menor escala, com as torcidas dos demais times (haja visto como foi comemorada a dramática volta do Grêmio de Porto Alegre à divisão principal do Campeonato Brasileiro, exibindo um espírito de luta que muito caracteriza, ou pelo menos caracterizava de maneira muito forte, o próprio Corinthians), mas não na intensidade da torcida mais numerosa, e provavelmente mais carente, do Estado.

Crônica da semana - JC Cavalcanti - 01/12/2005

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