Disse-me um amigo sãopaulino que todo
mundo nasce corintiano; alguns, porém, evoluem. Palmeirenses e santistas fazem
piadas similares. É, porém, um fenômeno ainda pouco explicado o fato de
que o Corinthians seja tão exageradamente querido pelos seus torcedores,
chegando estes a serem conhecidos por "Fiel Torcida", aquela que acompanha o
clube em todas as suas fases, talvez até mais nas piores, que foram muitas.
O que marca muito a história desse
clube é a dificuldade para tudo. As vitórias costumam ser penosas, com o gol
salvador nos momentos finais. Suas conquistas são suadas e questionadas ou
desvalorizadas pelos rivais, que aplaudem com gosto suas crises e
derrotas. Claro está que os corintianos retribuem generosamente essas críticas
e gozações.
Mas não é isso que quero comentar
nesta crônica. Me importa saber o que significa "ser corintiano", porque isso é
tão forte no emocional do torcedor, e talvez isso ajude a entender o que
também significa "ser palmeirense", "ser sãopaulino", ou "ser
santista".
Para elucidar um pouco o assunto, veja
alguns excertos da matéria sobre a origem do nome "Corinthians", de
Luiz Roque:
"Na primeira década do século XX, veio
ao Brasil um clube inglês de futebol chamado CORINTHIANS...
essa equipe excursionou pelo
Brasil e despertou grande entusiasmo. Assim foi que, em 1910, um grupo de
esportistas que incluía vários italianos e diversos industriais, fundou, em São
Paulo, o Sport Club Corinthians Paulista.
...
Finalmente, os paradoxos da História: esse time possui um nome exótico, muitas
vezes mal pronunciado, com um TH e um N estranhos ao nosso idioma.
Tal nome se liga a uma cidade
da Grécia distante (Corinto), que poucos conhecem, e designou, num passado
remoto e esquecido, os aristocratas esportivos da Inglaterra.
A entidade é, ainda, representada por
um distintivo rebuscado, com uma âncora e 2 remos, que lembram, melhor, um
clube náutico.
Mas esse conjunto de excentricidades
formou, ao que parece, um todo apaixonante, para a população de São Paulo e do
Brasil.
E a equipe fundada em 1910 angariou, surpreendentemente, a mais numerosa
torcida de São Paulo, e na qual predominam, exatamente, os segmentos mais
simples e modestos do nosso povo.
Que estranha ligação com o mundo e com o passado tem a
torcida corintiana?"
Vejam que interessante: os
"segmentos mais simples e modestos do nosso povo" identificam-se com um
clube cujo nome tem origem estrangeira (é o único caso no Brasil, ao que eu
saiba), nome esse que
se liga, num passado distante, a aristocracia britânica, e, mais distante
ainda, a uma das mais importantes e luxuosas cidades gregas da Antigüidade.
Paradoxalmente, essa imensa torcida
concentra a maior parte das pessoas de origem humilde que residem no Estado de
São Paulo, embora seja também numerosa na classe média. "Que
estranha ligação com o mundo e com o passado tem a torcida corintiana?" —
pergunta Luiz Roque.
Pergunta de difícil
resposta. Afinal, como
esse clube se apresenta e o que significa para os torcedores? Vejamos o que
temos:
1)
Um nome — Corinthians , um nome bonito (do qual os rivais
muitas vezes têm raiva), com apelo de ter origem estrangeira, com toda uma
história por trás, desvelada pela matéria de Luiz Roque, já citada;
2) As
formas mais constantes em que esse nome é representado:
2.1) -a bandeira ( um
distintivo rebuscado, com uma âncora e 2 remos );
2.2) -o hino, muito bonito, mas
meio triste, meio melancólico, em tom menor
:
"Salve o Corinthians, o campeão dos campeões...
Eternamente dentro dos nossos corações
Salve o Corinthians, de tradições e glórias mil,
Tu és o orgulho dos esportistas do Brasil
Teu passado é uma
bandeira, teu presente é uma lição
Fulguras entre os primeiros do nosso esporte bretão
Corinthians grande, sempre altaneiro,
És do Brasil o clube mais brasileiro."
Vejam que linguagem simples,
popular, o poema usa para declarar um amor incondicional ao clube;
ele não postula primazia absoluta entre os esportistas: ao contrário, o
Corinthians "fulgura entre os primeiros" (ou seja, o poema não o declara como
sendo o primeiro, e sim está
entre os primeiros), para finalmente terminar dizendo que, justamente esse
clube, cujo nome possui origem estrangeira, "é do Brasil o clube mais
brasileiro".
Como
curiosidade, essa expressão ( "o clube mais brasileiro" ) foi
colocada na letra do hino porque, até à época em que o mesmo foi composto para
a agremiação, e durante algum tempo depois, o time nunca tinha contratado
jogadores estrangeiros, ao contrário do São Paulo e do Palmeiras.
Outro
detalhe importante é que o hino não vincula ou identifica o clube com
nenhum tipo de estrato ou estrutura social, ao contrário do hino do São Paulo,
como veremos a seguir.
2.3) -a séde social simples (na
Zona Leste, a mais pobre da cidade de São Paulo), que nem sequer possui um
estádio à altura de mandar os jogos do time (dizem os adversários que o
clube fica na "Marginal sem número");
2.4) -os centros de treinamento
em locais periféricos, com instalações modestas. É o único clube
homenageado com um nome de estação do metrô (Corinthians-Itaquera),
naturalmente, num bairro proletário.
3) E outra característica fundamental, a meu
ver, a principal, que encaixa e sustenta as demais: a origem humilde, de
cunho popular, não identificada com nenhum grupo étnico em particular, com a
fundação no Bom Retiro, em 1910. Vejamos o que diz o site oficial do
Corinthians sobre isso:
"Era 1º de setembro de 1910 e cinco operários, Joaquiam
Ambrósio, Carlos da Silva, Rafael Perrone, Antônio Pereira e Anselmo Correia se
reuniram com mais oito rapazes e fundaram o 'Sport Club Corinthians Paulista'
após assistir uma equipe de futebol da Inglaterra. O presidente escolhido por
eles foi o alfaiate Miguel Bataglia, que já no primeiro momento afirmou: 'O
Corinthians vai ser o time do povo e o povo é quem vai fazer o time'."
O clube assim fundado tem uma
história de luta, de incríveis adversidades, de garra, superação,
paciência, dedicação, sacrifício, vitórias sofridas, atributos esses com
nenhuma relação
com a origem do nome Corinthians, que, como demonstra Luiz Roque,
remonta aos aristocratas ingleses do século XIX e à luxuosa cidade de Corinto,
na Antigüidade.
Os outros clubes não têm essa
mesma saga. Basta
olhar seus torcedores, que, pelo menos no caso do Palmeiras e do São
Paulo provêm de uma extração econômica, bem como educacional, em
média bastante superior.
Via
de regra, a maior predominância dos torcedores do São Paulo encontra-se
nos extratos mais privilegiados da população, em termos de nível cultural e
sócio-econômico. Já o
palmeirense tradicional, apesar da grande disseminação do nome do clube a
outras faixas da população (face a memoráveis conquistas do time de
futebol em tempos passados), é, em maioria, de classe média
e descendente de italianos, uma colônia lutadora e vitoriosa que
ajudou a construir a história do Estado de São Paulo.
Outras diferenças podem ser observadas por exemplo nos seus
estádios, maiores e mais bem localizados, e suas instalações e centros de
treinamento, em geral muito mais bem equipados, chegando a ser referência
internacional, no caso do São Paulo. Isso
sem falar nos seus hinos, mais orgulhosos, ricos em adjetivos ufanistas,
em tom maior e ritmo de marcha.
Vejam, por exemplo, um
trecho do hino do Palmeiras
(de Antônio Sergi e Gennaro Rodrigues):
"Quando surge o alviverde imponente
No gramado em que a luta o aguarda
Sabe bem o que vem pela frente
Que a dureza do prélio não tarda..."
Vejam que agora temos uma linguagem
mais aguerrida, que fala de lutas e vitórias:
"E o Palmeiras no ardor da partida
Transformando a lealdade em padrão
Sabe sempre levar de vencida
E mostrar que de fato é campeão"
Recordemos que o Palmeiras, fundado em 1914 com o nome de Palestra Italia, foi
patrocinado por industriais de origem italiana (destacando-se o Conde
Matarazzo, que doou o terreno para a construção do Estádio Palestra Italia),
que desejavam fundar um clube que representasse condignamente a
pujança daquela tradicional colônia no Estado de São Paulo.
Se o Palmeiras representa grande
parte da colônia italiana e seus numerosos descendentes, a simpática Associação
Portuguesa de Desportos congrega em maioria os descendentes dos nossos
colonizadores, e o Corinthians é idolatrado por uma imensa quantidade de
torcedores de predominância bastante humilde, como ficam as classes sociais
mais abastadas e tradicionais de nosso Estado? elas precisavam de um símbolo à
altura para representá-los.
Este veio com a fundação do São
Paulo, o último clube grande a ser fundado, somente em 1930 (com o
encerramento das atividades futebolísticas do Clube Paulistano), bem depois do
Palmeiras e mais ainda do Corinthians, e teve entre seus diretores e
presidentes, ao longo de sua história, pessoas de proeminência na vida política
e social do Estado.
O
hino do São Paulo (com letra e música de Porphyrio da Paz) reflete a história
de um clube de tradições fincadas na elite paulista. Vejamos
um trecho da letra desse hino, uma marcha alegre e muito bonita:
Salve, tricolor paulista
Amado clube brasileiro
Tu és forte, tu és grande
Dentre os grandes o primeiro!
Tu és forte, tu és grande
Dentre os grandes o primeiro!
Oh! tricolor, clube bem amado
As tuas glórias vêm do passado.
Notem como a letra retrata o
sentimento de um Estado pioneiro da industrialização no país, orgulhoso de suas
riquezas, carro-chefe da economia brasileira. O time é "o primeiro".
Em outro pedaço da letra, que não mostramos aqui, o poema se refere ao fato de
que esse clube possui o mesmo nome do Estado de São Paulo, "ostentando-o
dignamente", e, mais adiante, fala em "amor febril pela terra
bandeirante".
O caso do Santos é diferente.
Trata-se de um clube de origem humilde, que também tem um estádio bastante
simples, e que, inicialmente, representava a cidade de
Santos, mas hoje possui torcedores de inúmeras localidades e de todos
os extratos sociais, dos mais pobres aos mais ricos, graças ao surgimento,
naquela formosa cidade praiana, de numerosos jogadores geniais, gerando times
que exibem uma verdadeira arte nos gramados, exportando craques para
o mundo inteiro.
O hino do Santos, não sei se o
oficial, mas pelo menos o que é mais divulgado, pelo que pesquisei, é uma
animada composição de Mangeri Neto e Mangeri Sobrinho, apesar do
tom menor, e tem uma letra muito
entusiasmada:
Agora quem dá bola é o Santos
O Santos é o novo campeão
Glorioso alvinegro praiano
Campeão absoluto desse ano
Santos! Santos! GOL!...
Vejam que, apesar do Santos Futebol
Clube ter sido inconteste nos gramados, como time de futebol, durante
muitas temporadas, a letra é até modesta: "Glorioso alvinegro praiano,
Campeão absoluto desse ano". Ela celebra a alegria da sua torcida perante
sucessivas gerações de garotos de Santos e outras cidades, que, em contato com
a Vila Belmiro (a "Vila Famosa"), de repente revelam uma incrível genialidade
futebolística.
É bastante curioso que o
Corinthians, não representando
particularmente
nenhuma cidade ou grupo étnico específico (coisa que não
aconteceu com o São Paulo ou Palmeiras, ou mesmo o Santos, com o São
Paulo de certo modo se identificando com a cidade, e o Palmeiras representando
a etnia italiana, e o Santos representando a simpática cidade litorânea,
ao menos em sua origem), e talvez por isso mesmo,
esse clube tenha granjeado torcedores em toda parte do Brasil (assim como
o Flamengo, no Rio, que também não se identifica com nenhuma etnia e nem
representava, em sua fundação, sua cidade de origem).
Observem
como são bem diferentes as histórias, tendências, e o tipo de energia ou aura
que envolve cada um dos quatro clubes mencionados, e que, de certo modo,
se relaciona bastante com a estrutura psicológica de seus torcedores.
Por isso, creio que se pode dizer que "ser corintiano" tem a ver com algum tipo
de identificação psicológica com a saga desse Clube, ou seja, pessoas para as
quais a vida se apresenta como um mar revolto, que é preciso atravessar a duras
penas, com grande dose de perseverança, até de heroísmo, para depois de muito
tempo obter algumas recompensas, tal
como ocorre com as classes mais desfavorecidas, que levam vida dura e vivem de
esperança, passam longas fases de dificuldades para conseguir, depois de muita
luta, suas vitórias.
O torcedor faz da vitória da equipe
uma espécie de vitória pessoal dele, que lhe dá um sentimento agradável de
triunfo sobre os adversários, e, por extensão, sobre as adversidades,
predispondo-o a uma atitude mais favorável perante uma vida em geral difícil,
que, em nosso país, injusto e concentrador de riquezas, não tem dado sinais
claros e inequívocos de melhoras, malgrado a propaganda oficial
do governo.
Claro está que essa atitude não é só
do corintiano; como time de muitos milhões de torcedores, porém, as
marchas e contramarchas do time têm um peso muito maior do que, por exemplo,
teria perante sua torcida uma má campanha do São Paulo, cujo torcedor é
comparativamente mais frio e desapaixonado, creio eu, na medida direta de uma
vida de mais opções e significados.
Daí a emoção transbordante, muitas
vezes desproporcional, quando das conquistas e derrotas da agremiação, coisa
que também existe, em menor escala, com as torcidas dos demais times (haja
visto como foi comemorada a dramática volta do Grêmio de Porto Alegre à divisão
principal do Campeonato Brasileiro, exibindo um espírito de luta que muito
caracteriza, ou pelo menos caracterizava de maneira muito forte, o próprio
Corinthians), mas não na intensidade da torcida mais numerosa, e provavelmente
mais carente, do Estado.
Crônica da semana -
JC Cavalcanti - 01/12/2005
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