REATIVIDADE
Na tradição judaica, Satan é um anjo destinado a testar/tentar o ser humano,
para que este, conhecendo a si mesmo, possa livrar-se do ilusório e ter
a experiência real do Espírito
imergindo nEle, sendo Ele, e assim possa saber o que é o livre-arbítrio —
coisa que ele não conhece.
Mas as provas são duríssimas; o risco de naufragar é grande.
Aqueles que sentem o chamado para ir em busca desse conhecimento
poderão ser confrontados com situações
e pessoas que vão despertar o que há de pior e mais oculto em sua natureza emocional,
forçando as emoções reprimidas a mostrarem sua face
como dragões ameaçadores no caminho.
Mas as aparências enganam: o problema real não é a pessoa ou situação —
está em nossas reações a elas.
Essa é uma GRANDE LIÇÃO: vemos o mundo como nós somos;
os atributos, qualidades (e defeitos) que nele vemos são de nossa lavra,
ele reflete nossas dependências, emoções, apegos e aversões.
Por exemplo, um chocolate ou uma sobremesa deliciosa
são uma tentação? Não, a tentação não está nas
coisas do mundo, e sim em nossas reações a elas. Elas são apenas o gatilho,
a causa imediata que nos mostra nossos próprios condicionamentos, nossa
programação interior.
Embora projetemos nas coisas todo o poder de causar o mal, esse mal encontra-se em nós mesmos.
Durante confrontos interpessoais, as provocações que possamos sofrer na forma de palavras agressivas
em tom pesado e eivadas de mentiras ou meias verdades, injustiças, etc.,
são o estímulo que manifesta esse mal, mas não o cria: são apenas
o gatilho que ocasiona o doloroso contato de nossa consciência com nossas emoções
mais recônditas, de imenso potencial destrutivo, as quais querem emergir e se expressar.
Assim, se uma pessoa me insulta, calunia, acusa injustamente e sem provas, etc.,
eu posso ficar assustado, irritado e tentado a reagir no mesmo tom, o que pode ocasionar uma "bola de neve"
de agressividade mútua. Toda vez que eu me lembrar dessa pessoa me lembrarei
de suas supostas mentiras, maldades e manipulações, e tornarei a ficar irritado
e poderei criar cenas mentais de desagravo onde a punirei de alguma forma.
Logo, essa pessoa é a grande culpada, a responsável por esse tormento, certo? Não.
É certo que as palavras dela atiçaram
o ninho de minhas emoções mais ocultas e me provocaram um tumulto interior,
mas já elas estavam lá —
talvez inativas, mas não mortas, e contendo potencialmente toda a reatividade capaz
de se manifestar com violência.
À procura de um culpado
Fica fácil para mim acusar tal pessoa de ser a fonte do mal, pois assim encontrarei um culpado e
não terei que me olhar em profundidade.
Mas a verdade é esse potencial destrutivo que há em mim resistiu a todas
as minhas tentativas racionais de controle, repressão ou sublimação
— e tomar contato com ele me causa uma repulsa profunda, uma rejeição automática
ao ver emergirem esses conteúdos ancestrais.
E quem é os rejeita é o meu "eu", que
já experimentou situações onde ficou à mercê de sua
força irracional — e teme sua repetição.
Esse tipo de medo não impede que a imaginação projete cenários
de possíveis desdobramentos dos conflitos —
causando de imediato efeitos devastadores,
sem ao menos necessitar que tais eventos venham realmente a ocorrer.
O campo das emoções desprezadas
Não é exato dizer que o "eu" rejeita o aspecto danoso do mundo emocional;
na verdade é o contrário: a recusa, rejeição ou
não aceitação é que PRODUZ o "eu".
E essa NÃO ACEITAÇÃO potencializa enormemente a força dessas
emoções, na razão direta da intensidade dessa própria recusa.
A alma humana, em seu aspecto de repositório dos resíduos emocionais da experiência de milênios,
contém todas as sementes de todas as emoções já experimentadas pela espécie;
cada qual de nós, porém, é mais sensível a algumas emoções
do que outras, embora tendo possibilidade de vivenciar todas elas. E nosso ego desejaria selecionar as "melhores"
e erradicar as "piores".
Estas últimas, porém, extraem sua vitalidade de duas maneiras — e uma é exatamente essa rejeição.
A outra é quando são alimentadas, exercitadas e praticadas.
Ficamos, aparentemente, num beco sem saída, pois se a rejeição aumenta a força
das reações emocionais, aceitá-las (no sentido de incorporá-las)
conduz a resultados desastrosos e imprevisíveis.
Mas podemos aprender muito com a flor de Lótus, que emerge de águas sujas, turvas, malcheirosas e estagnadas.
Sua raiz está na lama, o caule na água e a flor, gloriosa, recebe os raios solares na superfície.
Ela tem um metabolismo que transforma milagrosamente o meio barrento em que se encontra, com restos
de outras plantas que morreram, e emerge
com uma beleza e pureza incríveis, sem se sujar nas águas que a envolvem.
Ai dela se tivesse um aparato psicofísico capaz de discriminar o ambiente e manifestar
volição: com certeza se revoltaria pelas condições que lhe foram
reservadas na existência!
Talvez ela pensasse: "Dizem-me para aceitar esse ambiente
e realizar meu potencial sem me revoltar. Mas isso é insuportável,
eu merecia um destino melhor do que esse,
cercada de impurezas!".
Certamente, isso afetaria severamente seu desenvolvimento.
O "METABOLISMO ESPIRITUAL"
Nossa experiência terrena também se dá sob todo tipo de condições
adversas — e nossa reação primeira, de recusar essas condições
internas e externas, cria uma deformação interior que distorce nosso florescer.
Há ALGO em nós cuja pureza somente se manifesta
diante da aceitação profunda dessas condições —
mas não no sentido de se submeter às inclinações
de raiva, inveja, violência, etc.,
e sim fazer do sofrimento silencioso causado por essa aceitação,
fruto da maturidade, o nutriente que propulsionará a transformação.
Quando alguém me ofende, calunia ou acusa injustamente sem provas nem direito a defesa,
o meu grau de perturbação interna está ligado a minha identidade,
isto é o que eu julgo que sou, as autoimagens (qualidades, defeitos) que tenho de mim mesmo,
o que fiz ou deixei de fazer, etc.
Raríssimos são aqueles que entendem que a consciência
que neles atua não é propriedade particular, e sim emana da Consciência Universal,
que se manifesta individualmente em cada forma viva.
A esses, tais ofensas não atingirão pessoalmente, porque já não possuem
o sentido de ser uma pessoa psicológica (identificada com os pensamentos, sensações e percepções).
O lugar comum é eu me considerar uma consciência pertencente ao corpo, sempre à
procura de alegria e prazer, o que faz desenvolver-se em mim uma grande reatividade a
condições adversas.
Claro que existe uma imensa distância entre as duas percepções de nós mesmos.
Mesmo assim, sem ter aquela elevação espiritual,
mas sinceramente empenhados em plantar a semente da paz em nós mesmos (e no mundo),
é possível permanecermos calmos diante de conflitos, acusações injustas, etc.
Não estou falando de omissão: certamente faremos todo o possível para
resolver tais situações da maneira mais adequada, mas sem perder o prumo.
Como? Em primeiro lugar, há dois princípios que devem ser aceitos:
1) Cada novo momento é fruto obrigatório
das condições causais antecedentes e não pode ser recusado.
Assim, aquilo que nos acontece deve ser plenamente aceito, de coração,
como inevitável. Até porque é mesmo.
Imaginar o contrário é supor que os acontecimentos são gratuitos,
não têm causa, ocorrem aleatoriamente, ao contrário do que diz a
lei de causalidade universal: até uma folha que cai no chão não é
por acaso, fruto da volição dela, que um belo dia teria dito:
"Sabe, ando meio paradona, vou cair no chão". Não. Muitas forças atuaram do jeito certo,
muitas causas contribuíram para que ela caísse.
Cientes de que cada movimento na materialidade é predeterminado por inúmeras causas,
não nos revoltaremos com as situações a que a vida nos submeter,
sejam coisas agradáveis, dolorosas ou imprevistas
(conflitos, acidentes, separações, doenças, perdas irreparáveis, etc.),
entendendo que não nos acontecem por acaso.
Isso equivale a aceitar profundamente o radical preceito de Jesus:
"SEJA FEITA A TUA VONTADE".
2) Nosso campo emocional não é nosso: é patrimônio comum da humanidade e
resulta de milênios de experiência terrena; mas, de um lado,
NÃO DEVE SER NOSSO AMO,
e, de outro, não pode ser suprimido nem controlado, pois
a sensação de controle,
que é o ideal do ego,
ocorre apenas sob condições temporárias
onde o balanço de forças lhe é favorável,
sendo por isso que o homem adora o poder (o que infla sua identidade egoica e o distancia
de Deus) — esquecendo que, na eterna alternância das condições, sua
fragilidade pode surgir ao virar a próxima esquina.
ISSO SIGNIFICA que não se pode recusar o mundo emocional
nem aceitá-lo (no sentido de submeter-se a ele),
o que contraria nossa lógica binária —
ou "x" é correto, ou seu oposto, "não x", deveria ser correto —,
gerando uma situação
de impotência para o ego, sempre identificado com o "fazer algo".
A aceitação desse princípio desveste o "eu"
de sua suposta vontade própria (sou forte, tenho controle, sei fazer escolhas, etc.),
situando o pensamento apenas como mais um elo da cadeia da causalidade (pois também é
causado e sem liberdade),
e colocando o ser humano na total dependência da Vontade Divina, com a qual ele se unifica.
Entretanto, em nossos dias essa aceitação e transformação se torna
cada vez mais difícil, pois estamos numa época de extrema valorização
e expressão do eu pessoal,
de suas paixões, gostos e desgostos.
Tudo isso induz o ser humano ao distanciamento do Espírito
e sobretudo ao consumismo, pela doutrinação incessante
de que a felicidade depende
de aquisições e experiências sensoriais — atando-o cada vez
mais à materialidade, graças a dominação mental propiciada pelos objetos da tecnologia,
com os quais a humanidade alienada se deslumbra e foge de si mesma.
Aguarde a continuação
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