desenredo, subst.
masculino -
ação ou efeito de
desenredar (-se);
      * * * * * * DESENREDO * * * * * *      
Site idealizado por José Carlos Corrêa Cavalcanti (2005)
desenredamento;
desprender-se da rede;
separar-se do que
está enredado.

O HOMEM QUE RECUSOU O CÉU
José Carlos      (02/junho/24)
Do livro "Contos, reflexões e poemas esotéricos", em andamento


Era uma vez um peregrino que andava pelos vales e montanhas da existência em busca de Deus... Mas, até cerca dos cinquenta anos, confundira Deus com o Prazer, a Riqueza e o Sucesso. E foi só após fracassar nos três ídolos, que muito amava, que ele percebeu que alguma coisa estava errada.

— "Meu projeto pessoal não está dando certo", pensou — Não haverá outra maneira de viver? Afinal, em toda a natureza e no universo conhecido não existe nenhuma noção de projeto pessoal, de uma pessoa estabelecendo para si objetivos individuais de auto-realização e lutando para atingi-los; tudo existe e funciona por causa de tudo".

Assim pensando, relaxou os nós que o prendiam ferreamente às aspirações materiais da existência e começou a procurar um caminho de natureza espiritual por meio de cursos, leituras e grupos de estudo esotéricos, filosofias diversas, igrejas tradicionais e seitas provenientes de outras culturas e visões religiosas.

Assim passou mais dez anos, ao final dos quais, contristadamente, pensou consigo mesmo: — "Embora eu não esteja mais apaixonado pelo Prazer, Riqueza e o Sucesso e tenha aprendido vários ensinamentos de valor, devo reconhecer que adentrei a casa dos 60 anos e ainda não conheci a Paz verdadeira".

Nessa época encontrou a grande amizade de sua vida, na figura de um filhote de vira-lata que perambulava pelas ruas. Olharam-se nos olhos, e ele disse para si mesmo, exultante: — "Eis aqui o que é real e nunca falseia. Não consigo discernir onde acaba minha consciência silenciosa e onde começa a dele".

Então, abandonou tudo e começou a terceira fase de sua longa peregrinação em busca do divino.
Como não tinha recursos materiais em abundância iniciou sua procura pelas regiões mais pobres e desérticas do país, caminhando com auxílio de um bordão e sempre acompanhado por seu fiel cachorro Lulu, repartindo com ele o pão, água e o que mais conseguisse adquirir com as esmolas que recebia das pessoas que simpatizavam com sua busca.

Mas, após muitos anos subindo e descendo montanhas íngremes e pedregosas, ele envelheceu. Seu cãozinho, que já passava de dez anos, também estava bem maltratado e já não tinha a força de outrora. A amizade que os unia, porém, que nunca tinha sofrido qualquer abalo, era agora perfeita.

Chegou então o peregrino, penosamente, no alto de uma montanha maravilhosa, onde havia uma entrada para o céu. Estava com as pernas inchadas e os pés doloridos. Ele e o cachorro sentiam muita sede. Explicou o caso na portaria e foi prontamente atendido, com água boa e fresca na porta do céu.

Agradeceu ao porteiro auxiliar e disse: "que bom que cheguei aqui! Finalmente! Pois não aguento mais procurar, e o Lulu também está muito cansado. Espero que ele também possa entrar".

"Claro que sim", disse o porteiro, "porém a entrada é individual".

"Como? O quê?" perguntou o peregrino, sobressaltado.

"Só é permitida de um indivíduo a cada vez, e você tem que decidir quem será o felizardo", respondeu o porteiro.

O peregrino não teve a menor dúvida; ajoelhou-se, abraçou o cachorro, limpou-o um pouco da poeira do caminho e disse-lhe, com lágrimas nos olhos:

— "Entre, Lulu. Sei muito bem que, esse tempo todo a seu lado, não fui eu que o conduzi, ao contrário: foi você que me guiou no caminho para o céu, pois quantas vezes em seus olhos eu vi o brilho do Infinito, firme, sincero, puro e sem jamais vacilar! Entre, meu velho amigo. Se em toda a nossa peregrinação na Terra o sofrimento não conseguiu nos separar, não haverá de ser o céu a fazê-lo: estaremos eternamente unidos em nossos corações".

O porteiro que, estupefato, a tudo presenciava, ainda perguntou:
- "Mas você tem certeza? Pense bem! é sua última chance!"

- "Não tenho qualquer dúvida! Essa é a maior certeza que tenho na vida", respondeu o peregrino.

Vários anjos que assistiam a cena, ficaram emocionados. Um deles pegou Lulu e, gentilmente, conduziu-o para o interior da pátria celestial. O cachorro seguiu docilmente, mas não sem soltar ganidos dolorosos ao deixar seu ex-dono, ainda ajoelhado, acenando-lhe adeus com a mão direita, na porta do céu.

Diante da cena comovente, o porteiro chamou São Pedro, e este dirigiu-se ao peregrino:
— "Meu filho", disse, "você sabe o que fez? Agora terá que passar mais toda uma existência procurando pelo céu!"

— "Não faz mal, São Pedro. Se apenas mais uma existência for suficiente para eu conseguir ter a mente do Lulu, de honestidade e sinceridade absolutas e que, ao contrário de mim mesmo, nunca reclamou nem vacilou na peregrinação, está de bom tamanho para mim".

Coçando a cabeça, São Pedro dirigiu-se ao auxiliar e disse:

— "Nunca vi um caso como esse. Na verdade a mente pura e firme que seu amigo canino mostrava apenas refletia, todo o tempo, a dele próprio, que embora às vezes vacilasse na jornada, jamais deixou de transmitir-lhe amor incondicional.
E ao dar a preferência da entrada no céu ao bichinho, descobriu aquilo que procurou a vida inteira: o Amor Absoluto que transcende o projeto pessoal na existência. Só esse Amor pode fazê-lo, e posso vê-lo brilhando em seu olhar, na porta do céu. Não posso deixá-lo de fora! Deixe entrar o peregrino".


O porteiro auxiliar sorriu, aliviado. E os anjos, que antes choravam, agora abraçavam o peregrino radiante, festejando sua entrada na Mansão Celeste.


Voltar