Introdução
Você jamais imaginaria que um assunto considerado tão
abstrato pudesse ter origem na aplicação de uma fórmula, passando por
competições, disputas, prêmios em dinheiro, e também por traições e episódios
controvertidos, curiosos e, pelo menos hoje, até engraçados.
Eu vou lhe contar uma história
verdadeira, acontecida na Itália em meados do século XVI, quando o Brasil era
recém-descoberto pelos heróicos navegadores
portugueses. Os atores iniciais dessa história eram
algebristas italianos importantes e considerados em sua época
.
São eles:
Gerônimo
Cardano,
Tartaglia
e
Scipione
Del Ferro.Posteriormente, a esses nomes históricos acrescentaram-se o do
dinamarquês Wessel, do suiço Argand e do grande matemático alemão Gauss.
O que motivou o surgimento da necessidade da existência de
novos números foi a competição em
busca da fórmula resolutiva da equação de terceiro grau. A solução da equação de
segundo grau (quadrática) já era conhecida desde a Antiguidade, graças ao
algebrista hindu Bhaskara (com a
fórmula que leva seu nome, hoje ensinada no ginásio).
Apenas para recordar, vamos rever a solução da quadrática, ax2 +
bx + c = 0:
x =
É bastante provável que cada leitor
destas linhas tenha usado ao menos algumas dezenas de vezes essa linda fórmula,
e no entanto
provavelmente não sabe nada sobre
Bhaskara. É como se alguém com esse nome
tivesse aparecido na Terra e, sem ter mais o que fazer, tivesse resolvido
inventar uma fórmula somente para infernizar os dias dos adolescentes.
Isso é uma falha grave no nosso sistema de ensino, que privilegia apenas os resultados, e assim perde toda o contexto, o drama, a beleza, a poesia, os conflitos, o esforço e a criatividade de nossos antecessores no Planeta Terra.
Por isso, vamos fazer um breve parêntese e homenagear, em rápidas palavras, o grande algebrista hindu. Para isso, usaremos como referência o excelente site:
http://www.malhatlantica.pt/mathis/India/BhaskaraII.htm.
Bhaskara
nasceu em 1114, na Índia, e escreveu uma obra magistral chamada
Siddhanta
Siromani, em 1150, com apenas 36 anos. O
seu manuscrito está dividido em quatro partes:
Lilavati
(A Bela) sobre aritmética;
Bijaganitas, sobre Álgebra,
Goladhyaya
sobre a esfera,
ou seja
sobre o globo celeste, e
Grahaganita
sobre o movimento planetário (astronomia). Por aí vejam a extraordinária
capacidade e versatilidade do matemático hindu.
O livro de Bhaskara teve enorme sucesso e foi usado em toda a
Índia, tendo substituído a maior parte dos textos que eram utilizados até então,
como o do astrônomo indiano Lalla
(720 - 790), mas só extrapolou as
fronteiras da Índia no século XVI, sendo traduzido para o persa por Faizi, em 1587.
Há inclusive uma narrativa de que Bhaskara tinha uma filha, Lilavati, para a qual ele havia previsto o dia e hora propícios para seu casamento. Porém, quando tudo estava pronto, Lilavati, cheia de curiosidade, inclinou-se sobre o dispositivo inventado pelo pai para determinação da hora exata do casamento, e uma pérola do seu vestido caiu sobre ele, causando um incidente que inviabilizou a predição do horário.
Por causa disso,
Lilavati
nunca se casou. Para consolar a sua filha,
Bhaskara
prometeu escrever-lhe um livro de matemática! É possível que essa história
tenha sido inventada pelo tradutor persa (Faizi),
mas
Bhaskara
escreveu realmente o livro com o nome de uma mulher
Lilavati
(A Bela).
Mas isso já é outra história e
como são interessantes as histórias! Para maiores detalhes,
por favor
consultem o
site
onde pesquisei o texto sobre
Bhaskara.
Competições
algébricas
Voltando ao nosso assunto, entre as Universidades e os
matemáticos italianos da época havia uma espécie de consenso de que, se havia
solução para a quadrática (equação de segundo grau) por meio de uma fórmula
envolvendo radicais, o mesmo
deveria ocorrer com a cúbica (equação de terceiro grau) e a quártica (equação
de quarto grau) e possivelmente em outros casos.
Consta em alguns livros que, na época, estabeleceu-se uma
espécie de competição entre os algebristas à busca da ambicionada fórmula
resolutiva, inclusive com prêmios em dinheiro, além da fama disso
resultante.
Note que o formato de uma equação cúbica completa seria:
ax3 + bx2 + cx + d = 0. No
entanto, a equação considerada na época era a seguinte: x3 = ax + b, que evidentemente é uma
simplificação do
problema completo.
Essa simplificação, porém, é totalmente válida na medida em
que, mediante uma simples substituição de variáveis,
a equação completa se reduz facilmente à equação x3 = ax + b, e assim a resolução dessa forma
simplificada conduz de imediato à solução da equação completa.
Enfim, por uma série de manipulações e mudanças de
variáveis surpreendentemente simples, pode-se chegar para a equação cúbica acima
à seguinte fórmula resolutiva:
x = +
Notem a elegância da fórmula. Ela foi publicada
originalmente em 1545, por Cardano, no meio de sua obra Ars Magna, em que aparecem completamente resolvidas
as equações cúbicas e as quárticas.
Não vou mostrar os detalhes aqui, para não perder de vista
o objetivo maior (que é a compreensão geral dos motivos que determinaram o
surgimento de novos tipos de números e como foi resolvido esse extraordinário
problema), mas o leitor interessado poderá encontrá-los no livro que serviu de
base para esta pesquisa, que é o conceituado História da Matemática, de Carl
Boyer.
Um
tesouro oculto
O importante é que nessa fórmula está escondido um
fantástico veio de incríveis descobertas, que, ao longo dos séculos seguintes e
até nossos dias, influenciaram grandemente a Matemática e suas aplicações
práticas, inclusive em Eletricidade e Eletrônica em geral.
Simplesmente essa fórmula obrigou a que os matemáticos,
entre desconfiados e temerosos, considerassem obrigatoriamente a necessidade da
existência de novos números que vieram a ser os números complexos,
inicialmente chamados fantasmagóricos e imaginários mas a solução desse
imenso problema surgiu somente muitos e muitos anos depois, com Gauss, na
Alemanha e Argand, na Suiça.
O
roubo de uma fórmula
Embora a magnífica fórmula acima tenha sida publicada por Cardano, Boyer nos informa que ele, Cardano, não foi o descobridor original, nem da
solução da cúbica, nem da quártica; essa solução seria de Tartaglia (1500-1557), de quem Tartaglia teria
recebido sugestões, segundo ele próprio declarou em sua obra.
Parece que Cardano obteve a fórmula de Tartaglia, que estava doente, sob juramento de não
revelar a ninguém, visto que ele próprio, Tartaglia, pretendia publicar a fórmula. Traindo a
promessa, ele publicou a solução em sua obra Ars Magna, creditando-se como o autor da histórica
descoberta, e apenas citando Tartaglia num papel secundário, como uma espécie de
coadjuvante.
Porém, descobriu-se posteriormente que o mérito da
revolucionária descoberta era de outro algebrista, Scipione Del Ferro (cerca de 1465-1526), professor
da Universidade de Bolonha, que, em seu leito de morte, revelou a fórmula obtida
a um estudante, Antonio Maria Fior (estas notas baseiam-se, integralmente, em
Boyer, na sua História da
Matemática, páginas 207/208).
O episódio acima descrito é conhecido como o roubo de uma
fórmula, e hoje a fórmula resolutiva da cúbica é chamada de fórmula de Cardano-Tartaglia.