A
representação geométrica dos novos números
O
impasse surgido com a descoberta da solução da cúbica permaneceu sem solução
durante mais de 2 séculos. Não houve nenhum progresso
nesse assunto, muito embora, nesse intervalo, grandes gênios da Matemática, como
Newton e Leibnitz, tivessem feito extraordinárias
descobertas no campo na matemática dos números reais, relativas ao Cálculo
Infinitesimal e Integral.
A
sistematização da teoria dos números imaginários só começou a ocorrer a partir
do final do século XVIII, portanto cerca de 250 anos a partir da época em que
surgiram os problemas que obrigaram os matemáticos a considerar a existência de
uma nova categoria de números.
Essa
sistematização teve seu principal impulso com a representação gráfica dos
números imaginários, introduzida inicialmente por Caspar Wessel (1745-1818),
que a publicou na Academia Dinamarquesa de Ciências e Letras. Entretanto, sua
obra permaneceu quase que totalmente desconhecida, e só cem anos depois é que
veio a surgir para o mundo científico.
Em
1806, Jean Robert Argand (1768-1822) também publicou
um ensaio sobre a representação geométrica dos imaginários. Finalmente, o
grande matemático alemão Carl F. Gauss (1777-1855), em 1831, formulou com
precisão a "equivalência matemática da Geometria plana ao domínio do número
complexo", ou seja, introduziu também a representação gráfica dos números
complexos, essencialmente a mesma de Wessel e Argand.
Embora
Wessel tenha sido o primeiro a descobrir essa
representação, o mérito da descoberta ficou associado aos nomes de Gauss e Argand, de modo que o plano dos números
complexos é usualmente chamado de Plano de
Argand-Gauss.
Por
quê é necessário representar os novos números
no plano?
De
há muito os números reais (racionais e irracionais) eram representados
graficamente numa reta orientada, chamado eixo real. Nesse eixo há uma origem,
à qual se atribui o valor 0 (zero). Estabelece-se um
segmento unitário, e para a direita marcam-se os números inteiros positivos
como múltiplos da unidade assim definida, e para a esquerda marcam-se os
números inteiros negativos. Números racionais e irracionais também podem ser
representados nessa reta, às vezes chamada de
reta real.
Pois
bem: constatando a impossibilidade de encontrar na reta dos números reais a
solução para a raiz quadrada de -1 (da qual decorreriam todas as outras raízes
quadradas de números negativos), Gauss admitiu a hipótese de
que ela se encontrasse no plano, a saber: sobre o eixo vertical, no ponto de
coordenadas 0
e 1. Ele chamou esse particular ponto do plano de
unidade imaginária, representando-a pela letra i.
Assim,
os novos números foram definidos como pares ordenados de números reais, e a
representação gráfica dos mesmos consiste em identificar cada par ordenado (a,
b) com um ponto do plano, cujas coordenadas retangulares são dadas por a e b.
Portanto, a unidade
imaginária i é simplesmente o par
ordenado (0,1), que é algo que se pode visualizar no plano. Essa visualização
foi fundamental para o progresso da teoria dos números complexos, do mesmo modo
que, na Antiguidade, ocorrera com os números negativos, que só foram plenamente
aceitos quando num eixo orientado assinalaram-se, para eles, representações
gráficas à esquerda da origem.
Falta verificar,
obviamente, que i
2 = -1,
o que dependerá de como serão definidas as operações entre os novos
números, ou seja, entre os pares ordenados.
É
interessante conjecturar o que teria levado Gauss a usar o par i =
(0, 1) como uma possível unidade
imaginária. Por que não qualquer
outro par?
Lembremos que estamos querendo obter a raiz quadrada de -1. Os números reais 1 e -1 não servem, pois elevados ao quadrado resultam em 1. Ora, esses números, quando representados no plano cartesiano, coincidem com a representação gráfica dos pares ordenados (1, 0) e (-1, 0). Como não estamos querendo a raiz quadrada de -4, nem de -9, as alternativas mais prováveis para solução da raiz quadrada de -1 parecem mesmo se situar nos pontos (0, 1) e (0, -1) do plano de Argand-Gauss, ou talvez em algum ponto de uma circunferência de raio unitário centrada na origem.
Enfim, Gauss considerou que o primeiro par, i =
(0, 1) seria a tal unidade imaginária
. Posteriormente, porém, com o desenvolvimento
da teoria, verificou-se que o seu oposto -i = (0, -1) também é uma raiz quadrada de -1. O que
faltava no campo real está "sobrando" no campo complexo; será fácil, mais
adiante, verificar que - i
também é uma raiz
quadrada de -1.
Definindo
as operações com os números complexos
Coloquemo-nos na posição de Gauss. Temos um novo conjunto de números, que foi chamado de C (conjunto dos números complexos), formado por todos os pares ordenados (x, y), onde x e y são números reais comuns.
Esses pares ordenados são representados
num plano, facilitando sua visualização.
Nesse
conjunto (C) existe um par ordenado muito particular, que é i = (0, 1). Por algum
motivo, estamos supondo que
esse número i será tal que
i
2 = -1; por enquanto, porém, nada
temos que nos autorize a afirmar
que i
é efetivamente
a raiz quadrada de -1. Para isso, será preciso dizer COMO serão as operações entre os números complexos, vale dizer,
entre os pares ordenados.
Enumeremos
que se deve esperar das operações a serem definidas em C (conjunto dos números
complexos), a fim de que a transição do "mundo antigo" para o "mundo novo" seja
o mais suave possível.
1. Queremos que C contenha R (conjunto
dos números reais)
Isso já temos, mediante a identificação que se faz
entre um número real x e o par ordenado (x, 0), sendo ambos representados pelo
mesmo ponto
no plano de Argand-Gauss.
É o mesmo que dizer que a reta está contida no plano.
Note que o fato de que um número real
x tem a mesma representação gráfica que o par ordenado
(x, 0)
foi suficiente para identificar x com (x, 0). Escreve-se x = (x, 0), embora formalmente tenhamos à esquerda um número de uma
dimensão, e à direita um número de duas dimensões.
2. Queremos que C preserve as
propriedades já válidas para os números reais
Porque
desejamos preservar tais propriedades no campo complexo? Porque, de acordo com
o item 1 acima, vimos que R é um sub-conjunto de C, mediante
a identificação que se faz entre o número real x e o
par ordenado (x, 0)
. Não teria sentido que uma operação de adição em C, isto é, entre pares
ordenados, não funcione no sentido usual, quando restrita à reta real.
Mas o "prolongamento" das propriedades do
campo real ao campo complexo dependerá da forma como forem definidas
as operações em C, como adição, multiplicação, potenciação, etc.
Propriedades tais como a lei associativa da adição, a existência do elemento neutro (zero), a existência
do oposto de qualquer número real e
inúmeras outras, certamente desejamos que sejam também
válidas no novo conjunto de números.
Entretanto
(e esse é um fato curioso e muitas vezes ignorado), como veremos mais adiante, nem todas
as propriedades dos números reais, como por exemplo as
propriedades de ordem, poderão ser "estendidas" para o conjunto dos números
imaginários.
3. Queremos que em C os problemas
propostos inicialmente, sobre raízes quadradas de números negativos, insolúveis
em R, possuam solução em C.
Isso
também dependerá do modo como forem definidas as operações em C.
Qual
é nosso ponto de partida?
Ora, tudo o que sabemos a respeito de operações são aquelas
que já conhecemos entre números reais: adição, multiplicação, potenciação, etc., e suas propriedades usuais, como a lei associativa da adição e
da multiplicação, a propriedade distributiva da multiplicação em relação à
adição, a chamada LEI DO CANCELAMENTO, a existência do elemento neutro da adição e
da multiplicação, a existência do inverso de todo número não nulo, etc.
Igualdade
entre pares ordenados
Inicialmente,
precisamos dizer quando dois números complexos são iguais. A definição é a seguinte:
(a, b) = (c, d) <==> a=c e
b=d.
Note
que não há nada arbitrário nessa definição: ela apenas exige que os dois pares
sejam representados pelo mesmo ponto no plano.
Adição
de pares ordenados
Agora, precisamos dizer o que é: (a,
b) + (c, d)
. A definição é a seguinte:
(a, b) + (c, d) = (a+c, b+d)
Essa definição é "boa", no sentido que veremos a seguir:
primeiro, ela garante que a soma de dois números complexos é ainda um número
complexo (propriedade do fechamento); em seguida, ela permite verificar
todas as propriedades
usuais dos
números reais: associatividade, comutatividade, elemento neutro, existência do
oposto.
Deixamos
a cargo do leitor a verificação (demonstração) dessas propriedades, o que é um
exercício bastante simples.
Por exemplo: o elemento neutro da adição, face à definição acima, será o par (0, 0). Prova:
(a, b) + (0, 0) = (a+0, b+0) = (a, b).
Existência do oposto
Note
que o oposto do par (a, b) é (-a, -b),
visto que a soma deles resulta em (0, 0).
Representamos esse fato, escrevendo: - (a, b) = (- a, - b).
Notemos
que, dado um número complexo
z = (a, b), então podemos também escrever:
z = (a, 0) +
(0, b) = (a, 0) +b*(0, 1) = a + b.i
Essa é a maneira mais comum de escrever um número complexo:
z = a +
b.i (que é a chamada forma algébrica do número complexo).
Deve-se
observar que está implícita nessa forma a identificação entre
(a, 0)
e a, por motivo já explicado
anteriormente. Outra coisa interessante de se notar é a identificação do par (0, b)
com o produto do número real b
pelo par
(0, 1)
.
De fato, o produto de um número real por um par ordenado é definido dessa maneira, ou seja, resulta no par ordenado cujos membros são os respectivos membros do par ordenado original multiplicados pelo coeficiente b.
Isto é, por definição, se
l é um número real qualquer, temos:
l * (a, b) = (l*a,
l*b)
Subtração
de pares ordenados
Agora podemos definir facilmente a subtração de números complexos: se z 1 = (a, b) e z 2 = (c, d), então
z 1 - z 2 = z 1 + (-z 2)
isto
é, definimos a subração entre z
1 e z
2 como a soma
de z
1
com o oposto de z
2.
Isso,
naturalmente, equivale a escrever:
(a, b) - (c, d) = (a-c, b-d)
Multiplicação
de pares ordenados
Consideremos
agora dois números complexos, z1 =
(a, b) e z
2 =
(c, d); como
deveríamos definir o produto z
1 * z
2?
Há uma certa "tentação" de definir assim:
z1 * z2= (a*c, b* d)
ou seja, multiplicando-se as primeiras coordenadas, e depois as segundas
coordenadas, para com esses produtos formar o par ordenado resultante.Afinal, na adição foi feito algo semelhante e lá funcionou
bem. Além disso, parece mais simples, e de fato é. Neste caso, porém, a
simplicidade é enganosa
.
De
acordo com essa definição, teríamos, por exemplo:
(3, 0) * (0, 5) = (3*0, 0*5) = (0, 0)
Ou seja, teríamos o produto de dois números NÃO NULOS dando como
resultado zero, quando entre os números reais isso não ocorre, vigorando ali a
chamada "Lei do Cancelamento", que diz: se o produto de dois números vale zero,
então pelo menos um deles deve valer zero.
Ora, não queremos que a multiplicação em C ocasione a violação de
qualquer propriedade de R. Poderíamos mostrar ainda muitos
outros inconvenientes da definição sugerida inicialmente.
Pois
bem, se essa definição não serve, então qual deveríamos
adotar?
Seja
z = (a, b) e w = (c, d). Sabemos que também podemos escrever assim:
z
= a + b.i
e
w
= c + d.i
Se admitirmos
que i
2 =
- 1, podemos ter uma noção de
como deveria ser definido o produto de números complexos.
Observação:
estou usando, para representar o operador de multiplicação, tanto o "." (ponto) como o "*" (asterisco), indistintamente.
Vejamos:
z
* w = (a, b) * (c, d) = (a + b.i) * (c + d.i)
(a
+ b.i) * (c + d.i) = a.c + a.d.i + b.c.i
+ b.d.i.i
Como estamos supondo
que i*i = -1, podemos escrever, agrupando os termos em i:
(a + b.i) * (c
+ d.i) = (a.c - b.d) + (a.d + b.c).
i
Ou,
em notação de pares ordenados:
(a,
b) * (c, d) = (a.c - b.d) +
(a.d + b.c)
Essa, efetivamente
, é a definição de produto de números complexos, ou de pares ordenados.
Agora vejam que interessante: para chegar a essa definição, utilizamos um processo em que, além de identificar cada número real x com o par ordenado (x, 0), já se considera também como hipótese que i 2 = (0, 1)2 = -1, e além disso foram usadas também as propriedade associativa da multiplicação antes mesmo de definir essa operação em C.
E, por incrível que pareça, o fato é que a definição adotada corresponde ao que dela se espera: todas as propriedades habituais da multiplicação de reais são preservadas!
É uma tarefa simples,
porém cheia de detalhes, verificar que a definição acima é inteiramente
compatível com as propriedades associativa, comutativa, distributiva,
existência do inverso de um par ordenado não nulo, etc.
Façam isso; é um bom
exercício. Só para encaminhar, vejamos a propriedade comutativa. Temos:
(a,
b) * (c, d) =
(a.c - b.d) + (a.d + b.c)
(c,
d) * (a, b) =
(c.a -
d.b) + (c.b + d.a)
Mas,
entre números reais,
as propriedades comutativa da
multiplicação e da adição
são válidas. Podemos então escrever
(c, d) * (a, b) =(a.c - b.d) + (a.d + b.c)
Obtemos, então, o mesmo resultado, mostrando que (a, b) * (c, d) = (c, d) * (a, b)
A solução do enigma
Mas,
será verdade que, com a definição adotada, teremos afinal i2 = -1 ?
Vejamos:
i
2 =
i * i = (0, 1) * (0, 1) = (0*0 - 1*1, 0*1 + 1*0) = (- 1, 0) = - 1
Isso mostra que está
resolvido, em C, o problema da raiz quadrada de números reais negativos. Além
disso, ganhamos outra raiz, que é - i:
(- i)2 = (- i) *(- i) = (0, - 1) * (0, - 1) = (0*0 - (- 1)*( - 1), 0*(- 1) +
(- 1)*0) = (- 1, 0) = - 1
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