As lágrimas da memória 

Amélia Veiga, poetisa Angolana de origem Portuguesa, publicou os livros de poesia : "Destinos" em 1962; "Poemas" em 1963 e "Libertação" em 1974 . Ganhou o prêmio de poesia "Fernando Pessoa" da Câmara Municipal de Sá da Bandeira, atribuido ao seu livro "Poemas".

Publicou também o livro "As Lágrimas da Memória".



Já me perdi em jardins imensos

Já me perdi em jardins imensos,
luxuriantes de perfume e cor...
Em muitos sonhos claros e intensos
já fui jardim e já fui flor...
Mas sempre espezinhada me revia
depois do deslumbramento
de me sentir jardim,
de me sentir flor por um momento...


Sou parte de um todo

Sou parte de um todo e como tal
o todo está em mim e eu estou nele.
Recuso o baptismo da metade
nesta utopia de esquerda e direita ...
O sentimento não tem cor e não tem lado
vibra de forma una e perfeita ...

 

A minha inquietação não tem fronteiras

A minha inquietação não tem fronteiras.
é um desassossego global e fundo.
Em minhas mãos agito mil bandeiras
e a minha dor é a dor do mundo ...


Nunca fingi a dor que me consome

Nunca fingi a dor que me consome ...
Desde o ventre materno que eu a tenho
como único alimento ... e minha fome ...



Minha terra moura de segredos
À Josefa, À nossa infância e juventude

Minha terra moura de segredos
onde nasci ávida e deslumbrada
para cantar os meus e os teus medos
num feitiço de moura encantada ...

Minha terra moura de segredos,
minhas ausentes companheiras
da inocência feliz e festejada
no Verão das tuas ruas
em mágicas brincadeiras

Logo e tão breve transfigurada
na descoberta da vida da verdade
cantada em poesia às estrelas
e nas conversas clandestinas
sobre o Amor e a Liberdade
que ficaram enterradas
no Largo das Pimenteiras...

Minha terra moura de segredos,
das loucas aventuras
em busca de tesouros
que morriam na Quinta de Mata-Mouros
e ressuscitavam secretas nos meus dedos...

Minha terra moura de segredos,
que segredo dos teus terei vencido
quando o teu vento do Sul me açoitava 
e segredava África ao meu ouvido ?


Encontro
Nos teus olhos leio o poema
límpido e intenso
que nunca me disseste
no tempo certo do nosso tempo...
E comovida
refugio-me no silêncio
que paira suspenso
sobre a nossa vida...
Tão breve
Tão breve
no tempo o nosso amor proibido
que dele restou apenas uma brisa leve
de quando em quando
sussurrando ao meu ouvido ...
Onda desfeita e não quebrada,
voo preso de ave ferida,
fogueira em rescaldo apagada,
música ao longe não ouvida ...
Momento na História
sem antes nem depois,
silêncio emoldurado
na memória de nós dois ...


Não sou capaz de me fixar no sonho

Não sou capaz de me fixar no sonho
e enredar-me em doces fantasias ...
Em cada evasão que me proponho
regresso triste e de mãos vazias...
Na dura realidade me detenho,
me revolto me desfaço e me refaço,
tão presa e envolvida que não tenho
vontade de desfazer o laço...


Se tivesses nascido de uma Deusa
(Às minhas filhas )

Se tivesses nascido de uma Deusa,
serias uma Bem-Aventurada
e a tua vida uma eterna festa
de estrelas e de luas enfeitada,
num Jardim Celestial onde o amor
fosse a única lei da Natureza ...
E não a luta dolorosa e tirana
que te coube em sorte tão madrasta ...
Mas para tua dor e minha dor,
nasceste de mim ... que sou humana ...


Se dos teus olhos voassem borboletas

Se dos teus olhos voassem borboletas
e eu fosse flor viçosa num jardim
Se as tuas mãos sábias inquietas
me esculpissem
e eu fosse pedra barro marfim
Tanto bastaria para mim !


Por vezes esta gloriosa sensação
Por vezes esta gloriosa sensação
de nada ser,
dispersa numa imensidão
e nela dissolvida a identidade:
um grão de areia no deserto,
um pingo de chuva sobre o mar,
uma nota de música num concerto,
um gemido de vento pelo ar ...
Momentos de extrema negação
porém de paz e plena liberdade ... .

Voltar