desenredo, subst.
masculino -
ação ou efeito de
desenredar (-se);
      * * * * * * DESENREDO * * * * * *      
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desenredamento;
desprender-se da rede;
separar-se do que
está enredado.

A SAGA DE 30 ANOS DE BUSCA ESPIRITUAL (parte 3)
José Carlos Corrêa Cavalcanti
14/03/2023

É POSSÍVEL MUDAR?

É bom ter a oportunidade de envelhecer: se tivermos sorte, podemos livrar-nos de muitos equívocos. Não que o tempo e as experiências tragam sabedoria e maturidade, necessariamente. Podemos ganhar anos sobre anos e continuar os mesmos. Pois, seguramente, cada um de nós tem alguns traços inatos, predominantes, que parecem mesmo perdurar. O "jeitão" da pessoa tende a prosseguir basicamente o mesmo, ao longo de toda a sua existência, que acaba se tornando o florescer de condições psicofísicas inatas (por herança biológica) combinadas com o ambiente do desenvolvimento, com suas influências condicionantes, garantindo a continuidade dessas tendências ao longo de toda a vida, apenas com míseras mudanças aqui e ali, apesar de todas as experiências, de todas as aprendizagens intelectuais e emocionais — e talvez por causa delas.

O nosso aspecto intelectual, ou racional, sempre quer controlar, predominar sobre o emocional, que é um campo extremamente sensível e reativo. E, na verdade, queiramos ou não, é ele que sempre tem a última palavra, porque é ele que nos fala de dor e prazer, felicidade e infortúnio, que o pensamento só conhece na teoria, pois não possui sensibilidade.

É claro que, intelectualmente, podemos mudar de opinião, adquirir novos conhecimentos que atualizam ou reciclam conhecimentos anteriores. E já não é muito fácil. Mas, é possível mudar algo no campo emocional? Quando dizemos: "Fulano mudou muito. Hoje ele é mais controlado, não se deixa levar mais pela raiva ou ciúme" — em que medida isso é verdadeiro? Tudo bem, o sujeito aprendeu a se controlar. Mas isso tem limites.

Inclusive uma boa pergunta seria: qual é a natureza desse sujeito? Freud diz que a noção de ego, que ele chamou de "pobre coitado", surge na faixa de consciência espremida entre as pulsões do inconsciente (que são as exigências inatas de satisfação e prazer que ele denomina ID, governado pelo Princípio do Prazer) e as restrições do Superego (que representa a moral familiar e social proibindo ou limitando aqueles desejos instintivos, o que vem a ser o Princípio de Realidade).

Segundo a Psicanálise, portanto, a concepção do ego origina-se num contexto de conflito entre o Princípio do Prazer (tudo o que se deseja e AGORA!), e o Princípio de Realidade, aquilo que é socialmente permitido, por meio das leis e regulamentos, com as penalidades correspondentes em caso de desobediência. Trata-se de um conceito baseado na necessidade de controle psicológico, que ocorre através do pensamento, o aspecto racional da psique, TENTANDO COMPATIBILIZAR as tendências instintivas de prazer com as regras sociais. Exemplo: eu quero aquele doce maravilhoso mas não posso simplesmente pegá-lo e ir comendo, é preciso pagar, para pagar preciso conseguir dinheiro, trabalhando, pedindo ou roubando — e há penalidades para procedimentos não permitidos.

Essa é a base a partir da qual se postula (artificialmente, a meu ver) a existência de um sujeito, o ego, como entidade capaz de produzir pensamentos mas independente deles, e capaz de selecioná-los e controlá-los — quando na verdade o que existe é um PROCESSO DE PENSAR E SENTIR interagindo constantemente em função dos estímulos percebidos pelos sentidos.

Nosso mundo emocional é muito mais primitivo, intenso e básico do que a artificial concepção do ego (que é o próprio processo de pensar, passando-se por uma hipotética entidade externa a esse processo), captando nossas sensações por meio de inúmeras conexões físicas, elétricas e químicas pelo corpo, essencialmente baseado exatamente nas pulsões inconscientes e instintivas com que todos chegamos no mundo.

Ele possui duas forças essenciais, que são o desejo de ser feliz (via satisfação das necessidades e desejos) e o medo da dor, ambas percebidas por meio de sensações físicas e psicológicas. Obviamente, sentir e pensar são processos completamente diferentes, e, embora pensamentos e emoções interajam constantemente, retroalimentando-se mutuamente, raramente esses dois processos concordam entre si, derivando daí inúmeros conflitos e tormentos.

Então, quando falamos em mudança interior, o que queremos dizer? Erradicar emoções desagradáveis? Mas está em nosso poder alterar o mundo emocional, resultado de milhões de anos de evolução? Ou seria mudar o ego? Mas vimos que não existe uma entidade-ego; o que existe é um processo pessoal e social atuando na consciência na forma de pensamentos repressivos, que evoluem para o modelo segundo o qual é necessário seguir as regras sociais para depois "ser feliz", ou seja, satisfazer nossos desejos.

Temos pouquíssima chance de mudar profundamente algo em nós mesmos. Emoções são sensações acionadas por nossas interpretações dos eventos cotidianos, e que perduram quimicamente organismo durante certo tempo, causando sofrimentos. Quando achamos que, via nossa racionalidade, podemos atuar no mundo emocional de forma transformadora, estamos apenas nos enganando.

E porquê? O pensamento, por definição, não sente. Em essência trata-se de um processo avaliador, que compara, julga e classifica as emoções em "boas" e "más", e depois seleciona algumas e despreza outras. Com isso, porém, o que fazemos é identificar, nomear e fixar nossos conteúdos — para depois "tentar" jogar alguns deles nas profundezas do esquecimento. E isso, se olharmos bem, é exatamente a melhor maneira de manter a vitalidade do mundo emocional. Soterradas vivas, nossas dores crescem na obscuridade à espera do momento certeiro de emergir, revitalizadas. Ou seja: a concepção de um ego reativo e repressivo não conduz à libertação do jugo emocional, muito ao contrário, aumenta sua força exatamente ao negá-la.

O GRANDE ENGANO

Nossa longa trajetória evolutiva, em milhões de anos de experiência terrena, nos levou à noção de sermos um sujeito pessoal exterior ao sistema percepção-sensação-pensamento, que são a MATÉRIA PRIMA DA MANIFESTAÇÃO. A grande pergunta, a meu ver, é:
existe uma alma EM SI MESMA (aqui entendida como Consciência) que não seja formada pelas marcas da experiências, condicionamentos e aprendizagens psicológicas? Ou seja, existe uma Consciência que não seja formada pelos conteúdos da consciência cognitiva da atenção/raciocínio/memória?

Essa pergunta não admite um simples SIM ou NÃO como resposta. O que se pode dizer é que, desconhecendo sua origem, a alma confunde a si mesma exatamente com os conteúdos das experiências. Ou seja, ela esquece sua origem ao se manifestar como ser humano, identificando-se com o organismo corpo-mente que lhe serve de suporte. Em consequência ela sente medo (visto que ele é finito) — ao mesmo tempo que deseja a aventura terrena com todos os seus riscos, prazeres e dores, desenvolvendo a noção de ter vontade própria como se fosse um indivíduo único (indivíduo significa indiviso, não dividido) quando, na verdade, ela apenas expressa os desejos das múltiplas forças inatas da psique (com a qual se identificou), cada qual desejando se manifestar por si mesma, independentemente das demais.

O pensamento não é, em absoluto, independente dessa mistura de volições dispersas e muitas vezes antagônicas; pelo contrário, é o meio de expressão das mesmas. Num momento, ele representa a ordem de falar mal de alguém, e no outro, representa a censura por havê-lo feito. Ou faz promessa de abandonar um hábito ou vício destrutivo, só para depois "abrir uma exceção". Essas ordens parecem vir sempre de um "eu" monolítico e único que seria o dono da casa (o que é a grande ilusão), mas elas vém do repositório das forças divergentes da psique com a qual a alma, erroneamente, se identificou.

De qualquer forma, persiste na mente humana a ideia de haver nela um "eu", uma entidade pessoal sempre desejosa de controlar as condições, inclusive as interiores, e agir eficazmente no sentido de encontrar a felicidade. Ora, para controlar algo é preciso sentir-se SEPARADO dessse algo. Assim, a concepção do "eu" gera o dualismo não só em nossa relação com o mundo externo (eu e você, eu e a natureza, eu e o universo), mas também com os conteúdos internos (eu e minhas emoções). É essa a raiz do drama humano — o sentimento de desconexão, de separação do todo.

O Espírito se mostra, em cada um de nós, como consciência identificada ao corpo físico, aspirando unicamente a felicidade terrena e inteiramente guiado pelo fluxo mental (percepções, sensações e pensamentos) — e é essa a gênese do "eu pessoal separado", ao qual caberia a satisfação dos desejos e evitação da dor, segundo o modelo: o sujeito que deseja está "aqui dentro", e os objetos do desejo estão "lá fora", e o eu mental ao qual a evolução nos trouxe até agora, e que aceitamos como nossa identidade, instrumentaliza a busca desse objetos que, conseguidos, nos "trariam" alegrias, bem estar, segurança.

Infelizmente, não encontramos na experiência sensorial um bem que seja só bem, que não traga consequências ruins, e ao querer conservar o prazer estamos inevitavelmente abraçando decepções, mágoas e toda sorte de frustrações — exatamente a dor que, logo de início, era suposto que nosso eu evitaria. E quando, finalmente, percebemos que as rosas invariavelmente trazem consigo uma vasta coleção de espinhos, paramos de desejar as rosas, mas isso costuma demorar um pouco para acontecer.

E então passamos a desejar a transcendência, o atingimento do divino. Porém, "aquele que procura", ao buscar algo diferente de si mesmo como sendo o objeto de satisfação permanente, está reafirmando a mesma relação sujeito-objeto que o distanciou da Totalidade, da Mente Primordial.

Por isso, nos é constantemente negada a sensação de ter atingido algo duradouro, permanente, imune às intempéries da existência (onde tudo é finito, mutável e sujeito a deterioração), pois esse "eu" que busca a transcendência ainda está no campo dos pensamentos, por mais sutis que sejam — é um personagem ainda num patamar de materialidade, mesmo que mais rarefeito, de onde aspira um estado interior de Paz, de uma Felicidade mais refinada, cuja natureza seria:

 Não desejo,
 Não medo nem ansiedade,
 Não ressentimentos,
 Não sentimentos de culpa,
 Não prazer, nem dor,
 Não tristeza nem angústia,
 Não raiva, nem ciúme;
 Não objetos do mundo como meios de ser feliz.

Mas isso não necessita de um "eu" pessoal à parte do Todo, muito ao contrário, pois essa é a concepção que cria a dualidade ao negar a Unidade entre o ser humano e a Mente Suprema, mas necessita da descoberta, graças a esta existência e apesar do seu desfile de prazeres e horrores, de ALGO NÃO PERTENCENTE a este corpo, a estes sentimentos, sensações e pensamentos despóticos que governam nossa mente e moldam nosso estar no mundo. E isso significa desfazer-se da noção de ego e ir além da mente humana.

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