desenredo, subst.
masculino -
ação ou efeito de
desenredar (-se);
      * * * * * * DESENREDO * * * * * *      
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desenredamento;
desprender-se da rede;
separar-se do que
está enredado.

A SAGA DE 30 ANOS DE BUSCA ESPIRITUAL - parte 4
José Carlos Corrêa Cavalcanti
08/04/2023

A QUESTÃO DA IDENTIDADE

A busca por nossa origem está implícita em toda busca religiosa genuína. Jesus chamava essa Origem Primordial de "meu Pai"; no Zen Budismo se diz "Natureza Original", no Vedanta se diz "Absoluto", mas independentemente dos nomes que sejam dados, no cerne dessa busca está o sentimento de profunda incompletude, de estarmos soltos na Terra apenas para satisfazer os imperativos da sobrevivência e procriação, até que, um dia, venha a morte encerrar penosamente essa aventura sem sentido enquanto não conhecermos nossa relação com o Princípio Primordial.

Segundo a orientação religiosa de cada um, a noção de haver uma Realidade Última como nossa origem, geralmente denominada "Deus", pode situar-se em vários tipos de concepções, mas há algo em comum a todas elas: o eu que busca, por variados meios, a revelação da Deidade em sua consciência.

Em outras palavras, a busca de Deus passa obrigatoriamente pela descoberta de quem é esse que busca? (e isso, pelo menos até certo ponto, está a nosso alcance), pois cada um de nós não terá paz enquanto não responder por si mesmo a pergunta dos antigos filósofos gregos: "Quem somos?"

Para responder essa pergunta, o eu (ou ego) tem que se desnudar. Ele se passa por ser uma entidade pessoal, mas é apenas um conjunto de processos reativos visando a obter o prazer possível e evitar ao máximo o sofrimento. O ego é o desejo inato de felicidade da consciência identificada ao corpo, que se cerca de autoimagens positivas (de bondade, beleza, inteligência, força, justiça, etc.) e, bem assim, reprime qualquer sentimento doloroso, que possa diminuir ou desacreditar seus conceitos de si mesmo, os quais são como máscaras grudadas no rosto.

Em sua inspirada poesia, o grande Fernando Pessoa tratou do tema do ego e suas muitas máscaras psicológicas (escondendo-se dos outros e de si mesmo) e do espelho, simbolizando a verdade impessoal, a Consciência. Vejamos em um trecho de “Tabacaria”:

Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
(Álvaro de Campos – Tabacaria)


Máscaras são as autoimagens que criamos para sentir algum bem-estar interior, escondendo nossas fragilidades, justificando nossos atos duvidosos, explicando nossos insucessos pela incompreensão ou crueldade dos outros, mostrando ao mundo exterior confiança, força, etc. Mas não podemos enganar a nós mesmos, pelo menos não indefinidamente (apesar de nosso empenho). Nesse poema, o personagem finalmente tira a máscara, mas não para viver sem elas, e sim para dormir (inconsciência), para viver sem ser agredido, pois sem máscaras ele é inofensivo.

Em outro poema, ainda na personalidade de Álvaro de Campos, ele retoma magistralmente o tema das máscaras e do espelho mas acrescentando a criança, a pureza, a inocência:

Depus a máscara e vi-me ao espelho. —
Era a criança de há quantos anos.
Não tinha mudado nada...
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança...
O passado que foi
A criança.
Depus a máscara e tornei a pô-la.
Assim é melhor,
Assim sou a máscara.
E volto à personalidade como a um terminus de linha.

A retirada da máscara resgata a identidade primeira e atemporal do personagem, que lhe é cara e à qual lhe apraz retornar:

Não tinha mudado nada... É essa a vantagem de saber tirar a máscara. É-se sempre a criança...

Ele tira a máscara e olha no espelho para ver a si mesmo em sua face original. Senão, por quê ele a tiraria? Certamente, porque deseja ver sua face verdadeira, quer ser ele mesmo, e não o que a vida fez dele. Mas depois ele torna a colocá-la, voltando à personalidade, a falsa identidade que todos usam na vida em sociedade:

… Depus a máscara e tornei a pô-la… Assim é melhor, Assim sou a máscara… e volto à personalidade…

Será possível aproximar-se de Deus com tanta falsidade? Não será preciso deixar todos os disfarces pela estrada? Não temos que resgatar nossa identidade original, representada pela criança? Esta tem a mente livre de conceitos, livre da ideia de ser um ego separado, e assim espelha naturalmente o Espírito. Lembremos das palavras de Jesus:

"Deixem vir a mim as crianças e não as impeçam; pois o Reino dos céus pertence aos que são semelhantes a elas". (Mateus 19,14)

Mas é muito difícil o resgate da inocência depois de perdê-la; então tratamos de conviver com nós mesmos, e o fazemos mediante o uso de máscaras. A esse respeito vejam o que Jung nos diz, com discernimento e clareza impressionante:

Não há despertar de consciência sem dor.
As pessoas farão de tudo, chegando aos limites do absurdo para evitar enfrentar a sua própria alma.
Ninguém se torna iluminado por imaginar figuras de luz, mas sim por tornar consciente a escuridão.


É preciso enfrentar o doloroso processo de desconstrução da ideia de sermos, cada um de nós, uma entidade pessoal autônoma e separada dos conteúdos da mente (pensamentos, sensações e percepções), entidade essa destinada a procurar felicidade no mundo — a depender de muito esforço e das escolhas certas, o que nos traz enormes tensões (pois nos deixa dependentes da incerteza do amanhã) e, não raramente, decepções (pois não conseguimos o que desejamos do exato jeito que desejamos). Sempre temendo pela instabilidade dos nossos afetos, buscamos segurança nas coisas materiais, mas vemos com temor a impermanência de tudo e nosso próprio fim inevitável.

É patente a angústia do ser humano por não saber quem ou o quê ele verdadeiramente é, levando uma vida de "faz-de-conta que está tudo bem", enquanto corre para satisfazer seus desejos e fugir de seus temores. E é esse, psicologicamente, o ego padrão, que vive imerso no tempo e depende de coisas para ser feliz (e sempre lhe falta algo), assim como deseja erradicar os aspectos dolorosos da existência, sendo derrotado em ambas as frentes.

Foi assim que me vi esses anos todos — mas, me era dito que meu eu verdadeiro era expressão da Realidade, da Mente Divina!

HÁ UM AGENTE PESSOAL DAS AÇÕES?

Considerar que nosso eu interior, movido por meio de pensamentos, sensações e percepções, seja o agente de nossas ações, pode ser uma solução fácil para um problema difícil. Por exemplo, quando dizemos: "fiz um lanche e me alimentei em casa mesmo" todo mundo entende, certo? O "eu" sentiu fome (?) e fez algo para comer. Mas se começarmos a puxar os "porquês" das coisas, vemos que os acontecimentos ocorrem de acordo com uma grande teia causal interconectada, onde a conjunção momentânea de inúmeros fenômenos, atuando como causas, torna necessários os fenômenos seguintes (que passam a atuar como causas), e assim por diante — e o pensamento que atuou para fazer o lanche, operacionalizando o evento, foi consequência dos eventos anteriores, ou seja, urdido por muitas causas.

Por exemplo, se não surgisse a sensação de fome, haveria a ação? Ora, essa sensação não foi escolhida nem premeditada, e poderia simplesmente não ter ocorrido naquele momento. Ou se, logo antes de fazer o lanche, eu recebesse um telefonema dando alguma notícia muito alarmante (ou na eventualidade de qualquer outro evento imprevisível), será que eu continuaria com fome, e faria o lanche em seguida? E se os ingredientes do lanche estivessem em falta, teria eu como fazê-lo? Continuando as indagações, vemos que qualquer ação é resultado de muitos fatos a ela antecedentes; na hipótese de mudança em algum deles, ou havendo a ocorrência de algum novo fato, o resultado poderia ser completamente diferente.

Porém consumada a ação, nosso eu surge reivindicando autoria da mesma, ignorando toda a cadeia causal envolvida, onde ele não estava presente, na qual o pensamento "vou fazer o lanche..." surgiu como a causa imediata da ação, mas não independente nem a única, visto que inúmeros fatores convergiram para sua ocorrência. Isso mostra que, mesmo no contexto das coisas práticas do cotidiano, é muito escasso, para dizer o menos, o grau de liberdade que temos; nosso eu, ou melhor nosso pensamento, ou melhor ainda nosso eu-pensamento parece ser apenas mais um elo na grande cadeia causal, totalmente influenciado ou mesmo programado pelas causas anteriores.

No mundo interior, onde ocorre nossa percepção e sensibilidade, e portanto o sentimento de felicidade ou infelicidade, eu já tinha descoberto quão frustrante é agir intencionalmente para tentar acalmar as memórias emocionais doloridas e zerar a ansiedade pelo dia de amanhã, ou seja, para purificar o espírito das mazelas adquiridas na existência e livrar-se do tormento das preocupações com o futuro — inglória tarefa, pois o suposto agente da transformação e liberação, sendo movido pelo pensamento, é parte da trama e do drama. E a pessoa, enquanto pessoa, não pode libertar a si mesma.

Demorei muito para compreender essa contradição: de um lado, de um lado a Filosofia Perene afirma que meu eu autêntico é a Realidade, a Mente Divina manifesta num organismo corpo-mente; mas, de outro, meu eu experiencial é um sofredor que não consegue a felicidade que deseja e é perseguido pela dor que detesta.

Mas a realidade aparente é enganosa, pois se fundamenta em algo mais profundo e não visível.

Imagine um copo d'água contendo sujidades, como partículas de alimentos ou outras quaisquer no líquido. Pense bem: podemos dizer que a água está suja? Certamente, não!

A água nunca pode ser contaminada com coisa nenhuma; seu H2O é imutável; se pudesse ser mudado não seria mais água. O que está suja é a MISTURA da água com as partículas estranhas. Mas, NOTEM: a base da mistura é a água pura, sem ela, onde estariam as sujidades?

A água pura representa nosso Espírito original, que se mostra como Consciência; e os corpúsculos estranhos representam nossos condicionamentos mentais, emocionais e físicos. Nessa metáfora, nosso ego é representado pela mistura, pois ele não sabe que sua base é o Espirito puro e incontaminado, e por quê não sabe? Porque está intuído de ter vontade pessoal própria — qualquer movimento dele agita um certo número de partículas-pensamentos-sensações e complica ainda mais a mistura.

Portanto, nosso eu é o Espírito-água, mas é confundido com o ego-mistura (totalmente água-baseado), o qual quer se purificar para atingir o Espírito. E como deseja fazê-lo? Mediante sua vontade pessoal, noção essa baseada exatamente na identificação com as partículas-pensamentos-sensações, cujo movimento acentua mais ainda a mistura.

A descoberta de que a mistura não pode purificar a si mesma me liberou da ideia de poder encontrar o divino mediante esforço próprio. Mas se a volição pessoal não é o instrumento adequado para a transformação interior, então o que se deve fazer?

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