O "NADA FAZER"
Se qualquer movimento do ego-mistura agita ainda mais as partículas na água pura,
o que ele pode fazer?
(Lembremos que essa pergunta é feita no contexto da busca espiritual, e não no trato diário
das coisas práticas, das ações técnicas necessárias à organização
e condução da vida cotidiana).
O que ele pode fazer é
nada fazer,
a não ser ficar consciente de cada pensamento e cada emoção
sem julgamento, apenas para conhecer amorosamente seu próprio estado mental e emocional.
Assim como o movimento caótico das partículas na mistura se acalma, e elas vão
se decantando no fundo do vaso na ausência de estimulação,
os estados emocionais alterados se dissolvem diante da disposição de acolhê-los sem reação
alguma
("Não resistais ao mal")
— seja medo, tristeza, raiva ou qualquer outro, pois todos eles são passageiros, e o que lhes dá
vitalidade é precisamente o procedimento reativo.
Ainda quando muito jovem, certa vez fui ao pastor da Igreja, questionando um trecho da Bíblia,
(Eclesiastes 7:2-4), que dizia:
Melhor é a mágoa do que o riso, porque com a tristeza do rosto se faz melhor o coração.
O coração dos sábios está na casa do luto, mas o dos insensatos, na casa da alegria.
Ainda me lembro da troca de olhares entre o pastor os presbíteros, sorrindo
bondosamente ao ouvir minha pergunta.
Eles acolheram gentilmente minha incompreensão do referido texto, mas imaginem a dificuldade de explicar o assunto
a um jovem de 16 anos...
Demorei muito, muito tempo para compreender, por mim mesmo, que faz bem ao espírito conhecer,
em silêncio e sem reagir, as dores que ele, como ego, tem se auto-infligido — e
ocultado de si mesmo, fugindo rumo aos diversos tipos de distrações, como o faz
a maior parte da humanidade, animando o fértil mercado do entretenimento.
E tudo para não ver o próprio medo e sofrimento!
A esse respeito, vejam que espantoso texto de autoria de Jung:
"Que eu faça um mendigo sentar-se à minha mesa,
que eu perdoe aquele que me ofende e me esforce por amar, inclusive o meu inimigo,
em nome de Cristo, tudo isto, naturalmente, não deixa de ser uma grande virtude.
O que eu faço ao menor dos meus irmãos é ao próprio Cristo que faço.
Mas o que acontecerá, se descubro, porventura, que o menor,
o mais miserável de todos, o mais pobre dos mendigos,
o mais insolente dos meus caluniadores, o meu inimigo,
reside dentro de mim, sou eu mesmo, e precisa da esmola da minha bondade,
e que eu mesmo sou o inimigo que é necessário amar?"
(Carl Gustav Jung THE COLLECTED WORKS OF CG JUNG – volume XI, par. 520)
Não podemos fugir de nós mesmos. Somente a contemplação acolhedora
e amorosa de nosso mundo interior, sem nada fazer, é ação
transformadora, pois faz surgir a Compaixão,
até então desconhecida, ou entendida como piedade para os que pedem nas ruas,
os que estão doentes ou presos, ou em grande sofrimento — porque então
cada um percebe ser ele próprio que está em grande sofrimento, doente, preso, e pedindo amor!
Cada um passa a ver si mesmo como o espaço (inconsciente de si) onde preconceitos, condicionamentos e
dores antigas moldam seu comportamentos e
suas opiniões, gerando reações de agrado ou desagrado, aprovação
ou condenação, simpatia ou raiva — simplesmente na medida em que seus desejos, expectativas ou inclinações sejam
satisfeitas ou não.
O EU PESSOAL E A VOLIÇÃO
O que nos dá a sensação de ser um "eu pessoal" é a atenção,
acrescida dos conteúdos da memória,
(isso vale mesmo para os animais; a identidade "pessoal" de um gato é sua atenção mais seus condicionamentos;
o mesmo ocorre com um cachorro, etc.).
E o estado "normal" de nossa atenção é estar acorrentada aos objetos da mente,
como pensamentos (lembranças, juízos, crenças, etc.), percepções (do mundo exterior, por meio dos cinco sentidos)
e sensações físicas (incluindo as emoções).
Por isso, quando você procura pelo seu "eu", não encontra nada a não ser os objetos da mente,
os quais resultam da experiência, das aprendizagens e condicionamentos, do desejo de afastar a dor
e realizar o prazer.
Todos esses objetos são transitórios, finitos e estão
sempre em estado de mudança, de fluxo,
reciclando-se constantemente mas sempre gravitando ao redor de nosso
Ser autêntico e DESCONHECIDO, do qual o eu pessoal é apenas uma sombra que imagina:
"se eu conseguir tal coisa, ficarei feliz", ou "se eu me livrar de tal problema, ficarei tranquilo".
Portanto, a aparência é que nossa identidade é o eu pessoal,
o que é corroborado pela maioria esmagadora da humanidade, igualmente iludida.
Ora, a principal característica do eu separado, ou ego, é a noção de
possuir vontade própria (através do pensamento),
a qual age no espetáculo da existência a fim de conseguir felicidade e fugir da dor.
Mas cada ação por ele praticada, sempre conduzida pela volição contida no pensamento,
é inteiramente análoga a uma onda do mar que se lança impetuosa à praia — conduzida pelas tremendas forças atuantes no mar,
do qual ela é uma manifestação.
Digamos que a violência da onda cause efeitos danosos nas pessoas e no ambiente próximo da praia.
Isso seria algo como um ato violento por parte de um ego compelido por pensamentos destrutivos.
Nesse momento, o eu encontra-se identificado com esses pensamentos
(talvez, posteriormente, vendo as consequências desastrosas, surjam pensamentos de arrependimento, remorso,
levando o "eu" às lágrimas, a fazer promessas de se modificar, etc.)
Em todos os casos, devemos notar que, assim como o comportamento da onda do mar não é
autônomo, da mesma forma o pensamento destrutivo (ou outro qualquer), que cria e manipula o eu pessoal,
também não é independente: provém do todo da alma humana, onde
atuam forças poderosas, muitas vezes divergentes e antagônicas, cada qual querendo
se manifestar por si mesma sem tomar conhecimento das demais.
Isso desconstrói o eu pessoal como unidade autônoma e independente, mostrando-o como campo de
expressão de pensamentos conflituosos, transitórios e egocêntricos que exigem manifestar-se,
e assim geram a ideia de vontade própria do "eu" — mas sendo apenas a eclosão
do mar revolto de seu mundo interior, ora de um jeito, ora de outro, dependendo
dos condicionamentos ativados, dos humores e predisposições circunstanciais, e dos arranjos provisórios
das condições aparentes levando a ações que, não raramente, custam muito sofrimento.
Vivendo nesse estado mental, nossa existência, estará bem descrita nos versos de Shakespeare:
"A vida é apenas uma sombra errante ... uma história
contada por um idiota, cheia de som e fúria, não significando nada".
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